Crítica: Os Fabelmans

Costumeiramente faço essa tal pergunta ao questionar a genialidade: qual foi o estopim de tudo? Um craque do futebol deve ter desde pequeno ganho uma bola, que se transformou em parte do seu corpo e fez, na sua vida adulta, nos encantar nos gramados. Um grande músico talvez tenha sido ganhando algumas aulas de piano, ou arranhando um velho violão, que desenvolveu seu dom para agraciar nossos ouvidos com suas harmonias magistrais. Um grande escritor deve ter tido uma herança mental das suas idas às bibliotecas e leituras constantes para nos prender com sua contagiante escrita. Mas, e um diretor de cinema? A magia do cinema e tentar fazer as imagens em movimento teria sua inspiração aonde? Steven Spielberg nos apresenta em forma dessa tal arte em movimento uma autobiografia cinematográfica, suas grandes inspirações que o fizeram ser o maior diretor popular das últimas décadas no encantador Os Fabelmans (The Fabelmans, 2022), estreia mais que esperada da semana nos cinemas.

O filme conta a história da família judia Fabelman, e como uma noite em 1952 num cinema de New Jersey, numa sessão do clássico O Maior Espetáculo da Terra, mudou a vida do pequeno Sam, que ficou impressionado com a cena em que um trem atinge um carro no filme. Desde lá sua vida começou a mudar, e ganhando uma pequena câmera do seu pai Burt, um engenheiro de computação, ele resolve fazer seus próprios filmes. Tudo isso com o estímulo de sua mãe, a pianista Mitzi, incentivadora voraz, e com a ajuda de duas das irmãs dele, que servem como cobaias para os filmes do garoto. A vida da família muda completamente quando são transferidos para Phoenix, no Arizona, onde Sam, mais crescido, começa a mobilizar os amigos e familiares para seus filmes, encantado as pessoas a sua volta. Mas nem tudo são flores nos Fabelmans, Mitzi é apaixonada por Bennie, melhor amigo da família, e isso balança a vida do promissor Sam. Com mais uma mudança, devido às promoções do pai, dessa vez para a IBM, no norte da California, Sam tem que mudar sua rotina, acaba sofrendo com o antissemitismo dos colegas, bullyings constantes, suas inseguranças e a separação dos pais, mas também encontra o primeiro amor, e depois de um bloqueio criativo, volta a filmar e vê que estudar não é seu negócio e filmar pode ser a salvação da sua vida.

É praticamente chover no molhado falar de um filme de Spielberg. O pior deles pode ter certeza de que é melhor que 98 por cento do catálogo próprio de streamings da vida, mas claro, The Fabelmans, fica longe disso, é uma encantadora ode de amor ao cinema. Se em Cinema Paradiso tínhamos uma carta de amor ao templo que é o cinema e os seus filmes, Fabelmans é a declaração de como surgiu a paixão de Spielberg em fazer o cinema. Uma câmera na mão e milhões de ideias na cabeça era o que o menino Sam (leia-se Spielberg) tinha. Além se ser esse poema visual sobre a arte de filmar, é um filme pessoal, uma volta no tempo do diretor, que junto com o roteirista Tony Kushner, mostra a vida de Spielberg dos sete até os 18 anos. Um retrato familiar que qualquer cidadão pode se identificar na tela. A sua historia está toda ali, o relacionamento com suas três irmãs, o conflito entre razão, personificado pelo pai, um cientista que sempre estimulou o filho, mas nunca achou que filmar pudesse ser mais que um hobby e arte, essa na personalidade de sua mãe, uma sensível pianista sempre pronta a fazer o filho abrir os horizontes da arte, a família judaica e o quanto sofriam por isso, e o principal, o quanto a busca dos sonhos pode afastar a família, como diria um tio distante ao garoto. Em suma, a arte pode ser mais importante do que quem mais amamos.

Algumas explicações de onde surgiram algumas grandes obras do cineasta surgem no filme, porque ele sempre, desde o princípio, gosta de colocar a importância da família, mesmo que no meio de Ets simpáticos, ou não, tubarões famintos, campos de concentração, dinossauros. Ou seja, os Fabelmans, mesmo com todos seus problemas, eram uma usina de amor e mesmo com desavenças e percalços, Sam nunca perdeu suas referências de casa, apesar de demorar a entender o divórcio dos pais, fato que chocou muito o diretor, mas também abriu suas asas para ser o que foi.

Michelle Williams está soberba como Mitzi, mãe carinhosa da família, o elo de inspiração dos sonhos de Sam, sua alegria contagiava, mas também escondia sua paixão por Bennie, esse interpretado muito bem por Seth Rogen, que mesmo com suas tiradas e bom humor de sempre, faz um papel diferente do que sempre fez. Paul Dano é Burt Fabelman, o elo racional da vida do garoto, o ator passa toda a seriedade e calma do personagem, já que ele representa a tecnologia, e esse mix da sensibilidade da mãe e da modernidade do pai, criaram o que foi Steven Spielberg. Tanto Mateo Zoryan Francis Deford, que faz Sam criança, quanto Gabriel Labelle, como adolescente, cumprem bem o papel e encantam com suas personificações do diretor .

Na parte técnica, a equipe sensacional de sempre, fotografia de Janusz Kaminski, sabendo usar desde o clima frio de New Jersey, ao calor árido do Arizona e culminando na ensolarada California, tudo com paletas precisas e tomadas deslumbrantes, além de usar as imagens em super 8, tomadas amadoras e simulações de clássicos do cinema. Música do sempre genial John Williams, dessa vez mais comedida, deixando as imagens criar o clima emotivo e sensível do filme. Trabalho de edição ótimo também de Michael Kahn e Sarah Broshar, afinal um filme sobre direção teria que ter uma montagem marcante. Temos cenas lindas como a montagem em um trenzinho de brinquedo da cena que fez Sam se apaixonar por cinema, Mitzi dançando e sendo filmada pelo filho, as trucagens do adolescente Sam nos filmes caseiros, o lado cômico do relacionamento de Sam com Monica, ela uma católica fervorosa, e principalmente, o diálogo final de Sam com John Ford, um dos maiores diretores da história (que segundo Spielberg ocorreu e está exatamente como foi na cena), um Ford interpretado magistralmente por outro gigante da direção, David Lynch, além é claro, a cena final, mas essa não dá pra contar.

Os Fabelmans já entram com tudo como favorito ao Oscar e pode dar mais uma estatueta dourada pro Spielberg, aqui no seu filme mais pessoal, comovente e inspirador, onde o diretor desnuda seu passado e explica muito sua carreira e seu presente. Uma obra madura que mostra que para seguir seus sonhos e desenvolver os talentos, basta estímulo, família, coragem e o principal: acreditar que fazer o que se gosta é possível. E nós, como observadores, agradecemos aos gênios e ao ilustre Steven Spielberg por fazer do cinema sua vida e nos dar de presente tantas obras fantásticas.

 

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