Crítica: Os Banshees de Inisherin

E aquela máxima da canção Cotidiano do Chico Buarque, se encaixa perfeitamente na vida de dois amigos na bucólica e isolada Inisherin. Todo dia Pádraic fazia tudo igual, acordava tal hora da manhã, fazia o de sempre com seus animais e às catorze horas estava no pub para tomar seus pints de Guinness com seu melhor amigo, Colm. Até que um dia tudo mudou. Com um enredo que fita com a complexidade do cotidiano banal e o que representa essa ruptura, estreia essa quinta o indicado ao Oscar, Os Banshees de Inisherin (The Banshees of Inesherin, 2022) com direção de Martin McDonagh.

Inisherin dos anos 1920, uma ilha relativamente distante do continente, onde uma Irlanda fervia numa insana guerra civil, que é apenas observada e ouvida na ilha pelos tiros e bombas a léguas de distância. Mas um dia, uma guerra particular é travada no local. Pádraic chama seu grande amigo Colm para beber e falar asneiras bêbados, rotina que movimentava a vida deles há anos, mas é surpreendido pela ignorada que Colm faz com ele e a afirmação que a partir daquele dia não seriam mais amigos. Enfim, o mundo de Pádraic literalmente desaba, ele tenta de todas as maneiras entender o que fez seu melhor amigo o largar de mão e trava uma guerra pessoal para reconquistar o amigo. E essa desavença acaba mexendo com todo o vilarejo, desde a irmã de Pádraic, ao filho do policial, o dono do pub, e principalmente Colm, que trata essa desavença sem sentido como algo definitivo e doloroso.

Às vezes o mundo pode estar em guerras terríveis, mas as nossas próprias guerras e desavenças nos mexem mais que uma explosão de bomba atômica e Os Banshees de Inisherin (eita nome difícil de filme, nesse caso até prefiro o nome que Portugal escolheu, Os Espíritos de Inisherin), com a preciosa e sensível direção de Martin McDonagh, nos mostra como o banal pode prejudicar e o quanto simples mudanças podem ser a chave para construir uma nova vida. No caso, a vida dos dois amigos seguiam um certo compasso, mas em um dia, Colm, um músico talentoso da região, viu que passar a vida toda falando sobre cabras, animais e o nada com seu ex melhor amigo estavam fazendo sua vida ser um eterno desperdício e talvez tentando cortar o atraso, na figura de Pádraic, teria ainda uma chance de demonstrar seu talento. E o que parecia ser uma simples história de um patético conflito de amigos nos cafundós do mundo, o diretor consegue nos mostrar um filme lírico e reflexivo, sem nunca ser pedante, e com muito humor, principalmente na primeira metade que é uma verdadeira guerra, a segunda parte beira o grotesco e surreal, mas que naquele lugar ríspido da Terra isso não impressionaria mais ninguém.

Colin Farrell faz Pádraic, um cara do bem, mas extremamente acomodado com sua vida e que tem o mundo abalado com a perda repentina do amigo, uma grande atuação mesclando muito humor com passagens fortes na hora certa. Farrell atua com vigor nas cenas em que demonstra todo o seu pavor por perder a única razão de sua vida, seu amigo e sua burrinha. Brendan Glesson também está ótimo como Colm Doherty, mostra toda a sua insatisfação com a vida e o quanto ela precisava ser modificada para dar razões para se mantiver vivo, mesmo que custe os dedos. Excelente química entre os dois. Destaque também para a atuação de Kerry Condon como Siobhán, irmã culta de Pádraic, que talvez movida pelo insano conflito dos dois é a única que resolveu ter coragem e enfrentar novos desafios, largando uma guerra e enfrentando outra em busca da liberdade. Barry Keoghan, como Dominic, o filho do truculento policial da ilha, também mostra todo seu drama e conformismo, sofrendo nas mãos do pai e do vilarejo. Grandes atuações premiadas com indicações de todos ao Oscar.

A fotografia, com planos abertos, às vezes até estáticos, da bucólica e pacata ilha também é um show à parte, de Ben Davies, é raro um filme atual ter essa sensibilidade de mostrar o local, as paisagens naturais, os lagos, os montes, e até os animais de uma maneira poética e fazer dele um personagem mostrando o quanto era complicada e isolada a vida na ilha. Destaque para as tomadas que ora mostravam Nossa Senhora e em outra cena um símbolo Celta, catolicismo e tradição pagã, lado a lado. A trilha de Carter Burwell, inserindo música local, muito violino e percussão irlandesa, além de um canto lírico hipnotizante, também faz o espectador absorver toda a realidade de Inisherin. Um filme para admirar, observar e ouvir. Claro que a película, a meu ver, apresenta algumas falhas, às vezes fica difícil acreditar em como alguém que era amigo há tanto tempo de outro (ainda mais numa ilha com meia dúzia de habitantes) iria da noite pro dia, sem muitas explicações, abandonar um amigo, e também como um violinista iria chegar ao extremo de sacrificar a si mesmo, para levar esse conflito tão longe. Enfim, podemos pensar que é uma alegoria da estupidez da guerra, que sem grandes explicações fazem vizinhos serem inimigos, parentes brigarem e países invadirem o outro por motivos torpes, e a guerra civil irlandesa era isso, por religião ou apoio aos britânicos, destruiu um geração e dividiu um país. E Inisherin, na figura de Pádraic e Colm, pode simbolizar o quanto pode chegar a insanidade de um conflito, e quantas marcas e traumas, por motivos mais patéticos que sejam, são para sempre e que, às vezes, só o extremo pode provocar uma trégua.

Os Banshees de Inisherin é um filme que tem o mérito de mostrar o quanto o ser humano é limitado, orgulhoso, arrogante, mas que sofre por não entender o outro, e o quanto amizades podem ser rompidas quando menos esperamos. Além de ser um filme que estimula, que mudanças podem ser a única saída para o conformismo de uma vida, e isso pode servir tanto vivendo numa metrópole, numa cidade do interior ou até mesmo numa ilha Irlandesa dos anos 1920. Um filme longe de ser uma obra-prima, mas realmente um peixe fora d’água, em uma época de grandes produções, com atuações primorosas e um roteiro que mostra como o aparente e terrível cotidiano de uma região pode afetar, acomodar ou encorajar seus parcos habitantes.

 

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