Crítica: O Valor do Perdão (The Forgiven, 2017)

Nem sempre a História, como nos é apresentada, é tão tranquila como parece, ao menos aos olhos do observador distante. A África do Sul, um dos países do mundo que viveu um dos regimes mais desumanos da história, o inacreditável apartheid, que separava brancos e negros de um convívio igualitário em sociedade, teve sua libertação no início dos anos 1990, com a eleição que deu o poder ao ANC e consagrou Nelson Mandela como presidente. Para a História parecia que era tudo lindo e pacífico, mas na vida real foi um processo doloroso, onde rancores, ódios e tentativas de reconciliação de um país extremamente dividido, eram a dura realidade. Uma das tentativas de pacificar, julgar ou até anistiar o passado do país foi a Comissão de Reconciliação e Verdade, órgão governamental que tinha essa complicada missão de lidar com as feridas de um povo machucado por décadas de racismo. Desmond Tutu, arcebispo da igreja anglicana, Nobel da Paz de 1984, teve a honrosa, mas ao mesmo tempo, ingrata missão de presidir essa comissão que tinha como intuito transformar a África do Sul em um país. Rolland Joffé, em 2017, dirigiu um filme que conta um emblemático episodio desses anos de Comissão, quando Desmond Tutu tinha que tentar entender o porquê de um detento supremacista branco, que perseguia negros cruelmente no regime derrubado, pedia uma anistia. História essa do filme O Valor do Perdão (The Forgiven), que está disponível em diversas plataformas, como Now, Looke, Vivo Play, Google Play, e iTunes.

O filme conta a história do encontro entre Desmond Tutu, umas das maiores autoridades religiosas do mundo que tem a espinhosa missão de ter encontros na prisão de segurança máxima Pollsmoor, com Piet Blomfeld, um ex-agente policial supremacista branco, do partido nazista sul-africano, com um cartel de mortes, perseguições e torturas no passado, mas que por alguma razão, faz com que o pastor Tutu tente, através de seus encontros, fazer refletir seu passado e quem sabe merecer um improvável perdão.

Rolland Joffé, diretor inglês, tem um mérito no cinema mundial. Foi com seu Gritos do Silêncio (Killing Fields, 1984), que através da telona, ilustrou pro mundo a estupidez do regime de Pol Pot no Camboja no fim dos aos 1970. A história do drama do jornalista cambojano no regime quase medieval a que o país foi submetido e a luta do jornalista ocidental em busca de resgatar o velho companheiro emocionou o mundo e fez o planeta ter noção do sofrimento do povo cambojano e suas utopias estapafúrdias. Sua carreira foi irregular, mas em 2017 conseguiu com grande empenho mostrar ao público uma belíssima história, de como foi dolorosa a transição de um regime, no caso do apartheid sul-africano para a formação de um país.

Com uma hábil direção, sem grandes novidades, com uma história retilínea, Joffé, que assina o roteiro com Michael Ashton, consegue nos mostrar humanidade mesmo em casos que a humanidade parece não existir. Joffe tem o mérito de mostrar os dois lados, tanto do sonhador Tutu, tentando ajudar a todos que pedem justiça e vivendo numa eterna dúvida (quanto vale sua luta para apostar no detento?), quanto do truculento Blomfeld, tentando sobreviver ao inferno, que devido sua fama e passado, faz sua vida na prisão ser uma constância de violência e medo. Muito do filme vale pelas atuações da dupla de protagonistas. Eric Bana faz um vilão perfeito, cheio de ódio e ressentimento, com um passado traumático, consegue criar com toda truculência o violento personagem. Forest Whitaker, com seu talento, parece que nasceu para incorporar personagens biográficos. Aqui senão tem o brilho intenso de suas atuações como Charlie Parker e principalmente, Idi Amin, ele nos apresenta um eficiente Desmond Tutu. Tanto fisicamente, com um belo trabalho de maquiagem que até se torna difícil reconhecer o ator, quanto na personalidade forte e conciliadora de Tutu, que às vezes briga com a realidade, mas deixa sua consciência tomar conta para tomar suas ações. O jogo de atuações dos dois atores é que levam o filme, seus embates, diálogos e encontros. Lembrando por vezes quase um Silêncio dos Inocentes, pois se Blomfeld não chega a ser um Hannibal Lector, suas atrocidades racistas do passado não aliviam muito sua fama. A diferença realmente está no pastor Tutu sempre tentando buscar na base do diálogo e compreensão tentar entender e, quem sabe, perdoar o passado nebuloso de Piet.

O Valor do Perdão é longe de ser uma obra prima e também não pode ser considerado o melhor do correto Joffé, mas tem o mérito de nos apresentar uma história que poucos conhecem da luta da África do Sul em limpar suas feridas e tentar aos poucos se tornar uma nação. O ódio e a divisão não somem apenas com uma queda de um regime, um canetaço ou uma eleição, ele é um processo lento, doloroso e angustiante, onde a busca por culpados não pode ser apenas uma vingança e uma caça às bruxas deliberada e sim uma delicada tentativa de observar ambos os lados e tentar entender o porquê de certas atitudes, que parecem imperdoáveis, mas que podem ter uma origem, e apenas a rasa punição não é a solução definitiva para unir um país. Vale a pena conferir!

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