Crítica: O Último Duelo

Em 1977 um diretor inglês estreava nas telonas com uma dramática disputa entre dois oficias franceses que passaram 15 anos em meio às guerras napoleônicas disputando um insano duelo provocado por um idiota incidente. Os Duelistas contava a trama em que o oficial Feraud (Harvey Ketiel), em sua obsessão por honra persegue por 15 anos, em encontros planejados e casuais, o oficial D´Hubert (Keith Carradine), que também não foge da raia e entra nessa sanha de disputa interminável. Era a estreia de Ridley Scott, diretor formado em publicidade e criador de diversos comerciais de televisão, que começava uma gigante carreira cinematográfica com um brilhante filme. Alien – o Oitavo Passageiro, Blade Runner, A Lenda, Thelma e Louise, Gladiador e O Gangster são alguns dos grandes filmes da carreira do aclamado realizador, suficientes para ele já entrar na história do cinema. Mas o já octogenário diretor não pensa em parar e resolve voltar ao tempo mais uma vez, passando para as telas um curioso e violento caso baseado em uma história real ocorrida na França de 1386, falo de O Último Duelo (The Last Duel, 2021), que estreia nos cinemas essa semana.

França, final do século 14, Jean de Carrouges e Jacques Le Gries, dois amigos e servis cavalheiros do reino tem sua amizade e honra abalada devido a uma acusação de estupro. Marguerite, esposa de Jean, é violentada por Jacques. Em uma sociedade onde a mulher era um simples objeto, ela contraria a todos e resolve falar e acusar o amigo do marido, mesmo com toda a nobreza, igreja, sociedade sendo contra. Resta então aos dois, com autorização do rei, realizar um mortal duelo medieval em busca da honra e, principalmente, da verdade.

O Último Duelo pode provocar certa confusão em que for assistir ao filme. Muitos, pensando na grandiosidade épica, marca registrada de Ridley Scott, em produções como O Gladiador e Cruzada, que abusam de ação intensa e violência crua, podem se surpreender com seu novo filme. Claro que temos uma reconstituição fantástica da época, algumas passagens de batalhas, com cenas de violência de tirar o fôlego, e um duelo antológico no final. O Último Duelo é um filme lento e reflexivo, mas longe de ser cansativo.

A obra de Eric Dager, O Último Duelo foi adaptada por seis mãos pelos amigos Ben Aflleck e Matt Damon e a roteirista Nicole Holofcener. Uma digna adaptação, com o mérito de dar voz a todos os envolvidos no episódio do estupro. Dividido por partes, cada uma conta o episódio pela visão de cada envolvido, Marguerite, Jean de Carrouges e Jacques Le Gries. Jodie Comer dá vida à corajosa Marguerite, que resolve enfrentar todo um sistema opressor que calava a mulher. Em uma ótima e brilhante atuação, Comer dá uma dignidade e representação única para uma mulher da era medieval, roubando o longa.  Jean de Carrouges é interpretado por um eficiente Matt Dammon. O cavalheiro orgulhoso, mas de uma coragem e servidão ao reino exemplar, ganha vida com um Dammon envelhecido, que não suporta ser passado pra trás e luta pela sua honra e de sua esposa. Adam Driver como ambicioso, puxa-saco e traíra Jacques Le Gries é o velho Drive de sempre, se não compromete ao menos não dá sono, é até ousado em algumas cenas, mas não mudando muito de feição no filme. Adam Driver sendo Adam Driver de sempre (eu sei que ele é badalado pela crítica, mas realmente o acho muito superestimado, acho um ator modorrento com a mesma cara sempre, enfim, eu acho assim…). Ben Aflleck faz o bêbado e mulherengo Conde Pierre. Ben está até um pouco caricato no papel, com uma peruca loira, mas seu personagem também não tem grande relevância e não compromete o filme.

Na parte técnica tudo funciona muito bem, uma fotografia sensacional de Dariusz Wolski, com tomadas dos campos gelados e cobertos de neve do inverno francês e nas partes internas dando ênfase à luminosidade nas feições dos artistas através de velas e candelabros. Trilha sonora de Harry Gregson-Williams correta, discreta e sem exageros e não apelando para ênfase nos momentos dramáticos dando liberdade, mais a exploração visual da película que buscar emoções fáceis.

Ridley Scott nos surpreende com um filme maduro, um drama histórico com uma história atemporal. Uma sociedade com um poder supremo dos homens e que usa a mulher como um simples objeto pronta para ser usada, largada e, o mais triste, a fazer se sentir culpada por sofrer a violência, obviamente era uma realidade imutável no século 14, mas até hoje temos alguns exemplos. Marguerite representa uma voz solitária, uma batalha pessoal e quase perdida, mas extremamente necessária. Absurdos que se acreditavam na época como que estupro não causava gravidez, ou que mulheres mentirosas ou corajosas mereciam a humilhação e a fogueira não se fazem mais presente. Mas quando a personagem, num comentário fala para sua melhor amiga que acha o amigo do marido bonito, isso serve como acusação e normalização da violência, então seria o mesmo que dizer que a mulher pediu para ser violentada porque estava com uma roupa inadequada, uma linha de pensamento que passados mais de 600 anos, mesmo que de maneira obviamente menor, ainda perdura numa sociedade dos homens. Enfim, em O Último Duelo vemos um Ridley Scott ainda em forma, não perdendo sua essência com cenas de tirar o fôlego, um duelo que, 40 anos passados do seu primeiro filme, Os Duelistas, ainda mostra que ele domina como poucos adaptações históricas, mas que mesmo tendo como cenário aquele violento contexto é um filme para buscar reflexão, questionamentos internos e atemporais e que a verdade, às vezes, é difícil de ser acreditada e algumas pessoas fazem de tudo para negá-la.

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