Crítica: O Som da Liberdade

Muitas vezes, no cinema, um bom marketing boca a boca, uma polêmica aqui ou ali, uma declaração forte ou umas teorias de conspiração, valem mais que alguns milhões para se promover um filme. E fechando todos esses requisitos, com o checklist completo e mais um pouco, finalmente estreia nos cinemas brasileiros o tal filme mais polêmico do ano, O Som da Liberdade (Sound of Freedom, 2023), com direção de Alejandro Monteverde.

O filme conta uma conexão internacional que envolve pedófilos, traficantes de crianças e países abertos e com vista grossa a esse dramático drama mundial. O esquema funcionaria mais ou menos assim: crianças são sequestradas em Honduras, são transferidas para Colômbia, passam por um filtro, algumas seguem pela América Latina e outras seguem para os Estados Unidos para satisfazer pedófilos estadunidenses. Voltando para Honduras, um pai perde os dois filhos ao ser enganado numa falsa promessa de estrelato a suas crianças e ao mesmo tempo um agente estadunidense, Tim Ballard, investiga pedófilos nos Estados Unidos. Ao prender um, descobre um esquema que passa pelo México e resgata um menino de um dos criminosos. Menino, esse, filho de Roberto, pai hondurenho, que mesmo feliz ainda está com o coração pela metade porque falta-lhe a filha. Isso toca a alma de Tim, pai de cinco filhos, que resolve largar tudo e partir para as inóspitas selvas colombianas, enfrentar facções rebeldes e resgatar Rocio, a filha desaparecida de Roberto.

De antemão, todas as afirmações que fizeram O Som da Liberdade ter esse burburinho e o fizeram ser tão odiado pela crítica, e amado por conservadores, além de faturar milhões de dólares, aqui nessa análise serão deixadas de lado. Me limitarei a falar apenas sobre o filme. E como ação dramática, o filme funciona. Toca o dedo (nem que de maneira superficial) numa ferida terrivel que é o trafico infantil de crianças e mostra que a pedofilia é um dos mais rentáveis mercados de contravenção mundial. Na imagem quase santificada de Tim Ballard, vemos um herói à moda antiga, com todo aquele estereótipo clássico do cinema, norte-americano, branco, cristão, conservador e pai de um numerosa família, que resolve ir além de prender pedófilos, e sim tem a epifania no drama de Roberto, de que precisa salvar e reconstruir essas famílias, nem que isso o faça largar o trabalho, a família (meio contraditório, enfim) e se embrenhar por países latino-americanos atrás desse resgate. Temos boas cenas em diversas locações, Tegucigalpa, Califórnia e fronteira do México, Cartagena, em uma espécie de quebra-cabeça investigativo para entender essa conexão internacional de exploração infantil. O diretor Monteverde sabe conduzir bem a ação, com momentos que exploram tomadas das paisagens locais, reflexões e o chocante drama das crianças jogadas em containers, arrancadas dos braços das famílias e sendo brinquedo de prazer de doentes seres humanos.

Até aí tudo bem, vemos um filme estilo anos 1980, do herói solitário, em prol de um resgate, mas o filme na verdade perde uma boa oportunidade de explorar mais em forma de denúncia o próprio Estados Unidos (segundo o filme, o maior consumidor de pedofilia da Terra). Claro que temos alguns pedófilos estadunidenses presos e tal, mas o que o filme mostra é que parece que é graças às cruéis e desumanas republiquetas da América Latina que surgem os bandidos, todos estereotipados como latinos cruéis, bárbaros, traficantes e desumanos. E a questão pessoal e individual também contribui contra a causa. Se no fim descobrimos que o verdadeiro Tim é um herói (quando escrevo esse texto pipocam denúncias de assédio sexual cometido por ele), que salvou milhares de crianças das garras do  tráfico de humanos, no filme ele arrisca a vida para devolver ao pai sua filha, sendo que diversas crianças ainda continuariam lá embrenhadas nas selvas colombianas. Artifício esse de um causa individual, o resgate de uma pessoa, que até no cartaz do filme está explícito, mostra o quanto o espectador se comove com missões divinas e individualistas de salvação, e O Som da Liberdade foca exatamente esse simplismo de situação, apesar de realmente não ter como não se comover quando o pai das duas crianças sequestradas mesmo feliz com a volta do filho solta a frase pro Tim: “Você não sabe o quanto é difícil ver uma cama de um filho vazia”. Artifícios piegas, mas que funcionam bem e explicam os milhões faturados pelo filme.

Jim Caviezel, nosso eterno Jesus de A Paixão de Cristo, está bem como Tim Ballard. Sua atuação é forte, sensível e verdadeira, como um verdadeiro pai iria se comportar. Claro que o ator Jim e sua vida particular conservadora e com conexões duvidosas, podem nos torcer o nariz por vê-lo na tela como o protótipo do salvador Wasp, mas no geral, como ator de ação, não compromete. Mira Sorvino é sua companheira Katherine, em atuação discreta e com papel limitado, e o quarteto Bill Camp como Vampiro, Eduardo Verástegui (produtor do filme) como Paul, Javier Godino interpretando Jorge e José Zuniga como o traumatizado pai das crianças Roberto, completam a base do elenco. Destaque para a menina Cristal Paricio como a sequestrada Rocio.

Um dos pontos negativos do filme é a insuportável trilha sonora, um sacro canto infantil, que permeia a trama em diversas vezes, chegando a doer os ouvidos, o ritmo lento em alguns momentos da trama, que faz dispersar o espectador, e é claro, a simplificação de um tema tão importante que acaba descambando na santificação personalista do personagem Tim e a constrangedora participação do Jim Caviezel no final dos créditos, através de uma mensagem explicando a importância do filme e o quanto forças ocultas, segundo ele, quase o  impediram de ser distribuído, além dos discursos carola do ator.

O Som da Liberdade, esquecendo o extra tela, e se despindo de preconceitos aos conservadores, é um bom filme, bem estruturado, mostra com crueza a questão seríssima que é o tráfico infantil, uma fotografia caprichada e convence como filme de ação. Longe de ser uma obra-prima, e é pouco panfletário, um filme genérico, como assistimos há décadas, que perde a chance de aprofundar-se mais no tema e ao invés de ser um filme denúncia, como é taxado por seus seguidores, é mais um caso de herói americano salvador da liberdade em missões pelo mundo para salvar a honra da América, coisa que Chuck Norris, Arnold Schwarzenegger, Stallone e afins faziam muito no passado, mas com menos tom moralista e o tom de missão divina de serem os escolhidos para isso. Enfim, se quiserem assistam ao filme, pois mesmo se não forem, podem ter certeza que por tudo que ele já gerou de discussão será um sucesso no Brasil também.

 

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