Crítica: O Menino que Matou os Meus Pais e A Menina que Matou os Pais

Às vezes a pessoa custa a entender como o tempo é algo sorrateiro. Os anos vão passando, as décadas, e nossa existência vai acumulando experiência, histórias, decepções e muitas memórias. Parece que foi ontem que em 2002, em chute despretensioso do Rivaldo, em que o até então melhor jogador da Copa do Mundo da Coréia e Japão, o goleirão com cara de mau Oliver Khan, soltava uma bola, digamos fácil de pegar, nos pés de Ronaldo Nazário, abrindo o caminho para o pentacampeonato da seleção brasileira. Passados 19 anos, o Brasil nunca mais chegou lá. Em fins de outubro de 2002, Luiz Inácio Lula da Silva era eleito presidente do Brasil. Depois de três tentativas fracassadas, o ex-operário chegava ao poder, transformando-o, para o bem ou para o mal, em um personagem para a eternidade. Dias depois, em um bairro de elite de São Paulo, um casal de jovens namorados, com a companhia do irmão do rapaz, cometia um crime, que pela brutalidade, motivos e envolvimento familiar das vítimas, chocou de uma maneira intensa o Brasil. Falo do caso Richthofen, onde Suzane e dois irmãos espancaram os pais da menina que dormiam num quarto, provocando a morte deles. Esse crime, que há 19 anos povoa o imaginário popular, virou filme, aliás dois, que estrearam recentemente no Amazon Prime, os polêmicos e esperados O Menino que Matou os Meus Pais e A Menina que Matou os Pais (2020), cada filme contando o ponto de vista pessoal do casal, dirigidos por Mauricio Eça.

Como já deixei claro, a história de paixão e morte do casal Suzane e Daniel é contada em duas películas distintas. A Menina que Matou os Pais conta o depoimento de Daniel Cravinhos, garoto do bem, simples, mas talentoso e trabalhador que tem uma paixão sem limites por três anos com Suzane Von Richthofen, menina rica, extremante manipuladora, dissimulada, com pais severos que proíbem a união dos dois e acaba sendo persuadido para assassiná-los, com a ilusão que assim os dois se livrariam do fardo da vida deles e seriam felizes para sempre. Já O Menino que Matou Meus Pais é o lado de Suzane, onde conta que sempre foi uma filha exemplar e estudiosa, mas que aos poucos foi dominada pelo ambicioso rapaz que exigia dela presentes, uma vida de luxo e a apresentou ao mundo das drogas, e que devido a sua paixão arrebatadora, resolveu ceder e foi cúmplice da morte dos próprios pais, pelos violentos e gananciosos irmãos Cravinhos.

O polêmico projeto teve sua estreia adiada quase 18 meses. A narrativa, dividida em duas partes, tinha a estreia prevista para março de 2020, mas logicamente a pandemia do coronavírus engavetou a ideia. Inclusive colocar em cartaz os dois filmes também foi deixado para trás e agora temos a oportunidade de vê-los no streaming. Antes de mais nada, ao contrário de muita gente que criticou a ideia de termos um filme de uma história de crime tão recente colocada nas telas, dizendo que não era válido, que seria de mau gosto, eu achei excelente o projeto. O Brasil precisa sim de mais filmes de histórias do cotidiano, independente se são boas histórias ou macabras como essa. Parece que sendo de fora, uma série ou um filme norte-americano de história real pode, aqui não, parece que não podemos mexer com nossas feridas. Enfim, voltando ao filme, Mauricio Eça acerta em cheio contando em duas versões a chocante história de paixão do casal Suzane e Daniel, que culminou na tragédia que impactou o país. Mostrando cada lado da história, o diretor dá voz conforme a visão de cada culpado, o que é importante para não tomarmos apenas um lado da moeda. Cada filme apresenta o mesmo estilo de narrativa e muitas cenas são aproveitadas nos dois. O que poderia parecer repetitivo, não cansa e mesmo a mesma história contada duas vezes, os dois filmes se ligam e graças à carga de suspense que o diretor consegue passar, assistimos com tensão as duas tão diferentes e tão iguais histórias.

O filme, se não ousa muito, conta uma trama redondinha, cronológica, sem grandes revoluções de narrativa e edição, mas funciona bem, até muito, pela naturalidade e realismo em que se desenvolve. Porque, vamos combinar, não tem nada mais banal que uma relação melosa de paixonite adolescente. A historinha de amor dos dois foi ou é a trama de vida de milhares de jovens, só que a diferença é o sinistro desfecho. Muito dessa naturalidade está na interpretação do casal. Leonardo Bittencourt está muito bem nas duas partes. Talvez melhor no ponto de vista dele, mostrando com realismo natural como um menino responsável, de boa família, honesto, consegue cair e se entregar totalmente a uma adolescente persuasiva como Suzane. Ele interpreta com até um grau de inocência forçada, que só alguém dominado, tanto pela paixão quanto pela companheira, pode se deixar arruinar a vida e se tornar um assassino. Já Carla Diaz está excepcional, tanto na versão malzona, como a menina porra loca, que não tem limites na vida e vive uma vida de transgressão e conflitos com a família. Quanto no lado Suzane inocente, a garotinha filhinha de papai, inocente, que vai cedendo tanto emocionalmente quanto financeiramente pro namorado ganancioso. Uma intepretação magistral, ousada e extremamente convincente. O resto do elenco também está muito bem, Kauan Ceglio como o irmão de Suzane, convence como adolescente Andreas que vê no casal quase uma relação paternal, devido ao total distanciamento e rigidez dos pais, se tonando mais que um irmão, um quase cúmplice dos dois, e tendo Daniel como um ídolo. Vera Zimmerman sempre ótima, é Marisia, a mãe da menina. Allan Souza Lima como Cristian Cravinhos também dá uma divertida e tensa interpretação como o cúmplice irmão de Daniel. Mas o filme é mesmo de Carla Diaz, que cria a sua Suzane pessoal, nos apresentando todas as possíveis faces do enigma que é Suzane Von Richthofen. O roteiro é de Ilana Casoy, uma das maiores especialistas em mentes psicopatas do Brasil, e de Raphael Montes, escritor e figurinha carimbada em novelas, séries e filmes. Apesar de ser um roteiro redondo e didático até demais, é muito bem pensado e feito por quem conhece a fundo o conturbado caso.

Longe de entrar em julgamentos sobre que lado está falando a verdade, para isso existem milhares de páginas de processos julgados, os dois filmes vêm em boa hora, para abrir quem sabe uma nova tradição no nosso cinema, que é de transformar nossas histórias em boas adaptações para as telonas. Falando estritamente de cinema, os dois filmes (é difícil, saber qual é o melhor, mas A menina que Matou os Pais parece mais chocante, apesar de O Menino que Matou Meus Pais ter uma atuação até mais brilhante de Carla Diaz), tem o mérito de contar uma história aparentemente banal, um namoro de três anos de jovens sonhadores, irresponsáveis e desafiadores com uma naturalidade e realismo poucas vezes vista em obras com temática jovem daqui. Detalhes tão docemente irresponsáveis, conflitos com pais, mentiras juvenis, namoro à escondida, tudo isso é colocado de uma maneira bem direta, o que acaba envolvendo o espectador, só que conforme vai chegando ao fim, o desfecho, por mais que todos saibamos como foi, ainda choca, apavora e nos deixa cada vez com mais dúvidas que respostas. Uma trama cheia de culpados vivos, mortos ou mortos em vida, literalmente, abalando as estruturas emocionais e provocando inúmeras e distintas reações.

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