Crítica: O Mal Que Nos Habita

Confesso que hoje em dia é difícil assistir cinema de terror. E garanto que não é por medo dos filmes e sim pela profusão de abacaxis do gênero que são lançados mês a mês no cinemão. Filmes de terror que só vivem de remakes, que não dão medo e com roteiros e histórias que mais fazem dormir que dar sustos, ou melhor nos chocar, o que é primordial no gênero. Mas eis que surge um filme, que vem dando o que falar e com justa razão. Quisera uma história de possessão vir do bucólico interior da Argentina, para apavorar o mundo com um dos filmes de terror mais tensos, densos e pesados dos últimos anos. Falo da produção argentina de Démian Rugna de 2023, o ótimo e perturbador O Mal Que Nos Habita (Cuando Acecha la Maldad), que aporta nos cinemas brasileiros nesta quinta, dia primeiro de fevereiro.

Nos solitários e imensos campos nos rincões argentinos, dois irmãos vivem juntos numa fazenda e no meio de uma noite ouvem estranhos gritos. Na manhã seguinte resolvem ir mata adentro e descobrem um corpo partido pela metade, próximo a uma casa que vive uma mãe e seus dois filhos. Um dos filhos, Uriel, está em estado putrefato numa cama, servindo como hospedeiro de um demônio. Os irmãos avisam o dono das terras, de nome Ruiz, do fato e os três resolvem sumir com Uriel, levando para longe do vilarejo. Só que ele, estranhamente, cai da caminhonete e o corpo some. Fazendo pouco caso do desaparecimento,  os três resolveram levar suas vidas. Mas no dia seguinte, Ruiz descobre que uma de suas cabras está com o demônio no corpo e comete o maior erro: matá-la com arma de fogo, desencadeando uma cadeia de horrores, possessões e mortes pela aldeia argentina.

Com direção e roteiro de Démian Rugna, posso afirmar com convicção, que assisti a um dos melhores filmes de terror em muitos anos. Fazia muito tempo que uma trama aliada a suas poderosas imagens, não gerava um desconforto no espectador. Rugna cria uma história que prende do início ao fim e com cenas diretas e extremamente fortes, cria uma atmosfera de pânico que fazia muito tempo que não presenciava nos filmes de terror. Talvez o cenário, pouco convencional, campos argentinos, tenha contribuído para a estranheza e tenha servido como palco perfeito para um dos filmes mais apavorantes de 2023. O diretor não poupa ninguém, mexe com animais, crianças, autistas, famílias, mulheres grávidas, tudo isso num espetáculo visual perturbador, quebrando convenções, digamos, politicamente corretas, do cinema de terror atual. Constrói também um semi-apocalipse, onde praticamente todo mundo acaba sofrendo nas mãos do tal demônio e sua sede de sangue.

Inclusive o tal Uriel, possuído pelo tinhoso, tem uma aparência escatológica, literalmente um corpo podre servindo como morada do mal. Fica difícil, sem dar spoilers, contar as cenas do filme, mas posso garantir que são realmente arrebatadoras e  capazes de provocar angústia em quem está assistindo. Fico muito feliz que ainda exista vida inteligente no cinema fantástico, e com certeza, mesmo bebendo em fontes clássicas, ainda se pode ter uma história original e que realmente provoque medo e calafrios.

O núcleo de atuações também contribui para a trama, com destaque para os dois irmãos Pedro e Jaime. Ezequiel Rodrigues dá vida a Jaime, um pai separado, que proibido de ver os filhos, pode ser a única salvação deles e como um caçador de demônios, é o único que pode deter a maléfica entidade. Também é importante a mitologia em torno da possessão e seu combate à propagação, como não usar armas de fogo, ou eletricidade, algumas regras para domar a besta. E outro ponto positivo, em falta nos filmes de terror atual, é que todos os atores do filmes, mesmo secundários, parecem se apavorar com a situação, tomando decisões realistas se um hipotético drama dessa magnitude existisse. O pavor e desespero no olhar dos personagens criam um  incômodo impacto em que assiste o filme.

Com uma violência gráfica chocante, trilha sonora perturbadora, mortes de revirar o estômago, a atmosfera provoca tensão e sufoco, e com mortes e cenas violentas que com certeza, entrará pra história do estilo. Efeitos especiais modestos, mas super competentes, fotografia angustiante, tudo funciona bem, num quebra-cabeça muito bem encaixado para provocar medo e repulsa. E volto a repetir, quanto menos escrever sobre o filme melhor, pois o medo de revelar alguma cena mais forte, pode estragar completamente a surpresa e a tensão de quem for assisti-lo.

O Mal Que Nos Habita é uma prova que às vezes, um orçamento milionário, um grande estúdio e uma baita promoção não quer dizer nada. Com uma reduzida verba, Démian Rugna nos entrega um filme de terror de verdade, à moda antiga, cru, filme de terror sem medo de ousar, de mostrar, de quebrar regras e principalmente chocar. Um filme que tem tudo para virar um clássico e prova que ainda existe gente muito boa com ideias pulsantes na cabeça, que mesmo básico é um filme de terror que mete medo de verdade, que é pra isso que serve esse tão amado, mas muito mal tratado gênero. Quem gosta da coisa, vá e assista na sala de cinema, se tem estômago fraco ou não gosta do estilo, nem passe perto do cinema…

 

Mais do NoSet