Crítica: O Homem dos Sonhos

Se tem uma coisa que me deixa feliz no cinema é que mesmo em um mar de velhas ideias e o mais do mesmo sempre, ainda surgem muitas mentes criativas, que conseguem, de forma ácida e inteligente, ainda criarem histórias originais. O norueguês Kristoffer Borgli é uma dessas joias raras (Sick of Myself, seu filme anterior, é uma joia rara), Ari Aster é outro, e quando os dois se juntam para criar um filme? Bom, o exemplo é o incongruente, absurdo e (por que não?) kafkaniano, O Homem dos Sonhos (Dream Scenario, 2023), com direção do norueguês, estreia da semana nos cinemas brasileiros.

Paul Matthews é um típico professor de biologia. Casado, com duas filhas, vai levando a vida se ocupando, tentando ensinar alunos desinteressados e como é doutor, tem sonhos de fazer seu livro baseado em suas teses, mas pena em buscar quem o publique (além de ter que escrever ainda). Curiosamente, várias pessoas começam a ter sonhos com a figura de Paul. Desde amigos, parentes, alunos e até gente que jamais o viu na vida. No início o estranho fenômeno causa fascinação e Paul acaba virando uma celebridade, todos querem conhecer o homem dos sonhos, despertando até a cobiça de agências de publicidade, que pretendem usá-lo para vender produtos nos sonhos. Só que da noite para o dia, os sonhos se tornam pesadelos, e Paul vira uma persona non grata no sono das pessoas e começa um processo de destruição pública e física da sociedade contra a figura de Paul Matthews.

O roteiro de Kristoffer Borgli, por um momento, quase foi oferecido ao Ari Aster, mas que devido ao sucesso do norueguês, acabou na sua incubencia de transpor a bizarra história para as telonas, desde que Nicolas Cage fosse o protagonista. Fechada a trinca, Borgli  na boleia, Ari Aster como um dos produtores e Cage como o homem dos sonhos ou pesadelos, o filme é uma forte crítica à sociedade que da noite para o dia constrói celebridades, mas que no primeiro vacilo, não titubeia em derrubar, ou melhor, cancelar as pessoas. Como é bom que filmes como esse e o próprio American Fiction, que ganhou o Oscar de roteiro recentemente, estão fazendo a autocrítica a essa cultura dos exageros imposta por alguns ditos iluminados. No caso aqui, além de mostrar a ascensão e queda de um cidadão comum, também mostra o quanto o capitalismo visa qualquer situação, mesmo no caso absurdo dos sonhos, para ganhar dinheiro. Não importa o canal, o meio, tudo é uma maneira de vender.

Paul Mathews representa esse cidadão comum, um professor que apenas queria se realizar com seu conhecimento, publicando um livro, mas acaba cedendo às tentações da fama e não sabe como se portar quando tem sua vida virada de cabeça  para baixo. Ou seja, não sabe dos macetes básicos para se livrar dessa cobrança de uma vida perfeita sem máculas que o século 21 exige. Também não deixa de ser uma divertida crítica ao que se tornaram as universidades hoje em dia, em que alunos, ao seu bel prazer, derrubam reputações de maneira cruel e sempre tem a razão porque são apenas vítimas de uma hierarquia educacional, onde eles querem ser o topo da pirâmide.

Mas antes de eu ser cancelado, não temos como não elogiar o desempenho de Nicholas Cage, perfeito como Paul Matthews, o professor à moda antiga, com seu jeito de perdedor inconformado, que não sabe como se portar tamanho o absurdo que a sua vida se tornou. Julianne Nicholson também está ótima como a esposa de Paul, Janet, que visivelmente está desconfortável com a nova vida do marido, e que jamais o apoia, inclusive servindo como aquele norte politicamente correto, tentando dar conselhos, por mais absurdo que tudo isso possa parecer. Michael Cera é Trent, como um cabeça de uma empresa de marketing viral que usa as redes para vender e vê nos sonhos uma maneira de vender, nem que seja Sprite, uma das melhores piadas do filme.

A direção competente do filme, a reconstituição dos sonhos ou pesadelos ilustram o cenário de absurdo que a vida de Paul vai se tornando, onde ali se vê talvez o dedo de Ari Aster, nessas representações oníricas do surrealismo, como cortes de extrema agilidade, muita sobreposição de imagens e passagens abruptas entre a realidade e fantasia. Essa passagem, de um cara que de mero observador de sonhos alheios, se torna quase um Freddie Kruger, se tornando violento e abusado. Inclusive, outra cena hilária do filme é quando a filha mais nova de Paul o compara ao vilão com garras dos pesadelos de Elm Street, e ele pergunta a ela como o conhece, ela responde: “vi no Google”.

O Homem dos Sonhos, no caso Paul Matthews, com um Cage inspiradíssimo, que por mais que não sabia como lidar com a fama, sentiu seu doce sabor, pode ter até uma ligação com a mensagem de uma aula do professor, sobre a função das listras das zebras, que é pra se misturar com seu bando e correr menos risco de ser uma vítima no caso de um leão. O leão no caso aqui é a sociedade que aleatoriamente escolhe suas vítimas, no meio de milhares de pessoas e que ao serem escolhidas perdem toda a autonomia, e se não se camuflam são devorados, e em tempos de redes sociais e falta de privacidade, tem a qualquer vacilo chance de terem suas vidas destruídas devendo desculpas para tudo. Mesmo no caso de Paul, como se desculpar de algo que não fez, já que os sonhos são pessoais e ele não tem culpa alguma disso tudo. Além de uma crítica aos predadores do consumo que aproveita qualquer brecha, da mais surreal que seja, para vender e transformar tudo num imenso comércio. O filme é um passeio visual, uma ode ao absurdo, onde a  fama pode  tornar a vida em  um pesadelo sem fim em um piscar de olhos, ou em uma mera cochilada.

https://www.youtube.com/watch?v=X7tbwRt2vzY

 

 

Mais do NoSet