Crítica: O Homem do Norte

Entre vulcões e geleiras existe um país. Uma pequeníssima nação com sua capital que tem o título de se localizar mais ao norte do globo que qualquer outra do mundo. Suas águas termais (devido à constante atividade vulcânica) atraem turistas, que enfrentam suas gélidas temperaturas para banharem-se nelas. Outra atração turística é a Aurora Boreal, que graças à geografia privilegiada, próximo ao Círculo Polar Ártico, quem a visita tem uma das melhores oportunidades de se encantar com o fenômeno e suas noites eternas de luzes naturais. A cidade de São Paulo tem 41 vezes a população do país, que tem como orgulho a banda Sugarcubes, que deu ao mundo a Björk, e tem uma seleção que na Copa de 2018 empatou com a Argentina, inclusive parando um pênalti de Messi. Esse país, é claro, é a Islândia, terra do gelo, do fogo e dos vikings, e cenário do mais novo filme do grande Robert Eggers, que nos apresenta a Islândia do século IX, quase X, falo de O Homem do Norte (The Northman, 2022), que estreia no Brasil essa semana.

Amleth é um menino príncipe que espera ansiosamente junto a sua mãe, a rainha Gudrun, a chegada de seu pai, o rei Aurvandill, que volta a suas terras depois de batalhas pelos mares do norte do mundo. Certo dia, o tio de Amleth, Fjölnir, em uma emboscada, assassina o irmão e toma seu reino, esposa e o povo. O menino consegue dar no pé e jura vingança, com ódio no coração, quase como um mantra, promete matar seu tio. Passados alguns anos, Amleth, já é adulto, passa sua vida como mercenário, invadindo cidadelas, escravizando povos e, em uma dessas “leves incursões”, descobre que seu tio teve o reino tomado e teve que fugir para a distante Islândia, onde mantém a pompa de nobre, mas não passa de um criador de ovelhas, que busca escravos para se manter no poder. Amleth então resolve partir junto a alguns escravos capturados e preparar terreno para sua sanguinária vingança.

Nesse caso não há algo de podre no reino da Dinamarca, mas sim na vizinha Islândia. Com perdão do trocadilho, Eggers nos apresenta uma grandiosa fabula nórdica, com pitadas de Hamlet e muita mitologia escandinava. Aliás, William Shakespeare teria tomado conhecimento da história de vingança de Amleth (lenda que corria a Europa por séculos) e criado a sua versão, trocando algumas letras e nomes. E misturando Hamlet do inglês com a lenda nórdica, o islandês Sigurdsson Birgir Sigurjónsson e o próprio diretor criaram essa incrível história apresentada em O Homem do Norte. Se o diretor tinha surpreendido o mundo com duas obras-primas mais profundas, com uma pegada discretamente sobrenatural como A Bruxa e O Farol, em seu novo longa ele prefere contar tudo de uma maneira mais simples e direta, na sedenta vingança do príncipe Amleth em terras gélidas da Escandinávia. Mas mesmo tendo um roteiro mais redondinho e sem grandes invenções, com O Homem do Norte ele nos apresenta um espetáculo visual e sonoro, com extrema violência e de uma precisão esplendorosa. Com uma pesquisa minuciosa, a direção de arte do filme fez questão de criar desde figurinos, armas, embarcações, com uma fidelidade incrível da época. Os armamentos do filme foram feitos de forma manual, tal como eram no século IX, dando uma verossimilhança incrível para as cenas. A fotografia é outro espetáculo à parte. Contando com incríveis tomadas noturnas do céu iluminado islandês e sua geografia privilegiada, Jarin Blaschke cria belíssimas tomadas naturais, além de um trabalho de câmeras fantástico, principalmente nas cenas do ataque dos mercenários a um vilarejo, onde a câmera simplesmente observa de longe o balé de violência das cenas e o duelo final do tio e sobrinho, um mano a mano filmado com uma câmera em um show de plasticidade de imagens. Trilha sonora também no ponto certo, feita inclusive com instrumentos musicais da época. Em suma, é uma ode à cultura viking, com um realismo histórico poucas vezes visto no cinema.

Alexander Skarsgard interpreta o adulto Amleth. O vigoroso ator, apesar de exagerado por vezes, consegue exalar o ódio que o personagem tem dentro de si, numa segura atuação. Nicole Kidman, como a rainha Grudun, por mais discreta que seja, sempre é um atrativo a qualquer filme. O mesmo vale para Willem Dafoe e Ethan Hawke, por mais que estejam em pequenos papeis, sempre dão uma contribuída robusta para qualquer história. Anya Taylor-Joy está muito bem como a eslava provocante e provocadora, sendo a única a conseguir, nem que seja por pouco tempo, domar o ansioso príncipe na sua jornada de sangue. Vale o destaque pra filha da terra do gelo, Björk que interpreta uma sinistra feiticeira.

O roteiro segue a cronologia básica dos filmes de vingança. Temos o fato, no caso a morte do pai, a fuga da morte, o ódio alimentado por anos e, por último, a oportunidade do troco. Uns podem até torcer o nariz pelo simplismo da história, pois Eggers, nas suas obras anteriores, nunca buscou o óbvio e sempre surpreendia, mas O Homem do Norte se preocupa mesmo é com a ode visual à cultura escandinava, suas lendas, crenças e sua atmosfera, tudo na medida certa, alimentando uma simples história, que é soberbamente bem filmada. Aliás, a violência explícita pode até chocar, mas era uma realidade de uma época, onde a ponta da espada, as ações heroicas moldavam e dividiam os homens, por mais cruel que seja. Eggers também não esqueceu o tom sobrenatural das suas obras, explorando o lado místico da região, com os rituais, as invocações de entidades, feiticeiros, guardiões de espadas e até a presença de um corvo, no caso a representação do pai de Amleth, que sempre estava ao lado do príncipe.

Robert Eggers mais uma vez nos surpreende positivamente, com um épico inesquecível, com uma beleza visual e estética primorosa, violento e sanguinário como a época em que se passa exige, em uma fiel homenagem à cultura dos homens da terra do gelo, a mitologia nórdica, com tantos fãs pelo mundo, e a obra apresentada por ele, acredito que não irá decepcionar os fãs do gênero e do já consagrado diretor.

 

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