Crítica: O Exorcista – O Devoto

Se existe um ditado que serve, quase sempre, no cinema é: “Por favor, não mexam nos clássicos!” Ou, no caso, não mexam com o capeta. Há 50 anos o mundo do cinema de terror virou de cabeça pra baixo (ou melhor, virou toda a cabeça) com a história de uma menina de 13 anos que estava possuída por um demônio e precisou de ajuda de padres exorcistas para enfrentar o mal. O Exorcista, de William Friedkin , adaptado da obra de William Peter Blatty, modificou o gênero, e mesmo cinco décadas depois da sua estreia, ainda causa desconforto, com seus incríveis efeitos e atmosfera demoníaca. Claro que vieram continuações esquecíveis e alguns filmes com a marca do original. E agora, em 2023, David Gordon Green, que já mexeu com um clássico na irregular, mas assistível, trilogia do Halloween, resolveu mexer com o coisa ruim, criando uma história que supostamente seria a continuação do clássico de 1973, falo do aguardado O Exorcista – O Devoto (The Exorcist – The Believer, 2023) com estreia nos cinemas brasileiros para essa semana.

O filme começa apresentando Victor Fielding, um fotógrafo que está com sua esposa grávida no Haiti. O país sofre um terremoto, e Sorenne, sua esposa, acaba morrendo, mas os médicos salvam a filha deles, Angela. Passados 13 anos, Angela hoje é uma pré-adolescente normal, amada pelo dedicado pai. Mas um dia, na escola, a menina e sua amiga Katherine, resolveram que iriam fazer um ritual para invocar a mãe de Angela. As duas se embrenharam em uma floresta e ficaram sumidas por três dias, para desespero de Victor e os pais de Katherine. Mas ao voltarem, as meninas parecem que perderam a noção do tempo, tendo poucas lembranças dos dias que ficaram fora. E para piorar, as duas voltaram agressivas, mudando a voz, blasfemando, enfim, tomadas por algo inexplicável.  Ao tentar todos os meios que a ciência pode ajudar e não tendo resultado, Victor, um cético de carteirinha, procura Chris MacNeil, uma senhora que décadas atrás enfrentou o mesmo com sua filha Regan e pode dar algumas pistas para ele. Mas a coisa começa a piorar cada vez mais, e ele e os pais da menina decidem fazer uma junção de fé com exorcistas representantes de igrejas pentecostais, batista, católica, religiões africanas, juntando todas as forças espirituais para mandar o capeta para fora do corpo das meninas.

Uma grande decepção. Essa é a minha definição para esse tão esperado filme, que desde os lançamentos dos trailers, mexeu demais com os fãs do gênero do terror. Mas Green, na sua pretensão de dar uma continuidade, usando como fio o inesquecível clássico de 1973, consegue a proeza de fazer um filme de terror que não dá medo. O ritmo arrastado do início do filme já dá uma noção de que o filme não entraria no tranco. A sequência do terremoto no Haiti é bem executada, mas se  a mulher de Victor tivesse morrido num acidente nos Estados Unidos e tendo a filha salva não mudaria nada no desenvolvimento da trama.

Outro fator que é um problema de praticamente qualquer filme de terror moderno é a fotografia demasiado escura. Com a preocupação de não agradar na maquiagem ou no CGI esse artifício, ao invés de provocar medo, causa sono no espectador. Lembramos de filmes como Tubarão e O Exorcista nos anos 1970, com fotografia clara, nítida e que os efeitos produzido artesanalmente funcionam e causam arrepios e tensão até hoje. Mas se O Devoto não convence no ritmo, na fotografia, é na trama que ele se complica mesmo. O roteiro do próprio Green, em conjunto a Peter Sattler, que prometia uma evocação nostálgica à série, é de uma pilantragem sem fim. Trazendo novamente Ellen Burstyn como um chamarisco, chega a ser uma vergonha usar a veterana atriz em nem cinco minutos da trama, não aproveitando dignamente o que seria o elo do filme original.

O filme tem como premissa central a provação da fé. O personagem Victor, ateu convicto, precisava passar por essa experiência terrível para ter sua elevação espiritual e poder lutar contra as forças do mal. E defende a ideia de que apenas um sincretismo de crenças, ou uma união universal dos seres humanos pode ser a saída para expurgar o mal do mundo, no caso do filme, do corpo das meninas. Mas tudo é apresentado com mais furos que uma peneira, em uma história que em quase nenhum momento cativa o espectador. Talvez para tentar dar um upgrade no clássico de 1973, ele nos apresenta uma dupla possessão, ou um duplo sofrimento para as duas meninas, mas o que o filme realmente faz de pior é deixar de lado a pompa do sacrifício da função do exorcista. Se no primeiro filme tínhamos um padre em dúvida consigo mesmo e outro certo do que estava fazendo, os dois eram representantes do que o título do filme sugere, eram exorcistas. Em O Devoto, basta apenas crer, se unir e rezar que qualquer pangaré pode enfrentar as forças demoníacas. Um simplismo que acaba com a essência do filme.

Leslie Odom Jr. tem uma atuação segura, mas que não me passou convencimento, seu jeito de tratar os gigantes problemas de sua vida não chegam a mudar suas feições. Lidya Jewett, como Angela, e Olivia O’Neill como Katherine , as possuídas pelo demônio, mandam bem, sofrem, provocam, se expõem e provocam. Não causam o choque de uma Linda Blair, mas seguram bem a indigesta função de terem a alma tomada pelo demônio. Ellen Burstyn, como uma consagrada autora que vende livros sobre sua experiência com sua filha, que a abandonou por isso, também é muito pouco aproveitada, um grande desperdício.

Se David Gordon Green acertou na mão (principalmente no primeiro Halloween) e deu uma guinada razoável à continuação do filme de John Carpenter, ele infelizmente erra feio na sua pretensão de dar um elo de ligação de O Exorcista aos dias recentes. Mesmo com cara de que teremos continuação, ele falha em quase tudo, desde a escolha dos atores, a má utilização deles, a possessão das meninas, que por mais bem feitas que seja, não tem um pingo de horror e a atmosfera do filme de 1973, até a dublagem da voz do capeta soa caricata demais, nada comparada à voz de cigarro e uísque de Mercedes McCambridge que foi imortalizada na voz de Regan. E pra piorar, usando o artifício dessa tal união de crenças em prol do bem, com essa pieguice, foi destruído o sentido primordial da série, contar com um exorcista experiente e de verdade para combater o capeta e sua abominável maldade. Fico temeroso pelas possíveis continuações que nem Linda Blair pode salvar…

 

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