Crítica: O Bom Doutor

Poucas coisas na vida têm sentimentos que remetem a dubiedade tanto quanto o Natal. Enquanto para alguns é uma data familiar, de muita confraternização, consumo e festejos, para outros beira uma depressão profunda, uma sensação de ano perdido, melancolia e, principalmente, se a pessoa teve algum trauma recente e próximo a essa data, a simbologia do nascimento de Cristo, tanto para quem crê ou não, tem o poder de perder totalmente o sentido. O cinema enésimas vezes, através de imagens, mostrou diversos tipos de natais, em um sem número de gêneros e nada como uma boa história de Natal para emocionar, divertir ou fazer refletir. Nos próximos dias estreia nos cinemas o filme francês O Bom Doutor (Docteur?) que conta uma história diferente, mas não menos divertida e emocionante da data crista mais celebrada, dirigido por Tristan Seguéla, realizado em 2019, mas que apenas agora chega a nossas telas.

Nas ruas de Paris, na noite de Natal, acompanhamos a saga de um ranzinza, mas eficiente doutor, que é o único que se dispõe a fazer plantão naquela noite. Como uma espécie de serviço médico móvel, Serge vai com seu carro atendendo as chamadas de casos simples diretamente nas casas dos pacientes. Entre reclamações e goles, vai passando a noite, tratando os mais diferentes casos. Em uma ocasião vai de encontro a uma chamada de Rose, uma conhecida da família que tentou o suicídio através de remédios. Ao chegar lá conhece Malek, um ciclista entregador de comida por aplicativo, que acaba quebrando um galho para Sege numa ocorrência. Mas tudo muda quando Serge atropela Malek e se machuca, e ao tentar ajudar, o ciclista acaba lesionando o médico que não consegue se mexer devido ao seu nervo. Resta apenas a Malek se passar pelo profissional de saúde e Serge, via fone do celular, ficar dando as dicas para o entregador se passar por doutor. E o que se revela um sucesso devido ao carisma e simpatia de Malek.

O Bom Doutor foge dos convencionais filmes de Natal e nos apresenta uma divertida, mas acima de tudo, dramática história. Seguelá que também assina o roteiro a quatro mãos, mostra em 90 minutos uma noite na vida de um médico e um entregador de comida via aplicativos na noite de Natal. Um paradoxo interessante, porque enquanto 90 por cento da população está nas suas casas comemorando, alguns precisam estar a postos, ou salvando vidas ou matando a fome de alguns. Dois personagens tão distantes entre si, mas extremamente unidos por seus ideais. Se Serge tem seus traumas, praticamente vive por viver e vê no seu trabalho uma maneira de dar um sentido a sua existência, Malek é jovem, tem sonhos e planos e vê na sua profissão uma liberdade, pois não é um entregador, é um empreendedor, né? O contraste do mau humor do idoso com a inocência e simpatia do jovem, fazem às avessas, os dois formarem uma quase perfeita dupla pela noite de Paris. O carisma dos atores ajuda, a rabugice de Michel Blanc, com seu realismo sarcástico, mas de um saber profissional exemplar, impressiona. O ator, tanto nas cenas de humor, quanto nas mais dramáticas, rouba o filme e, por mais chato que seja o médico, acabamos torcendo por ele. Malek é interpretado por Hakim Jemili, youtuber conhecido na França, com seus canais de humor. Seu jeito desengonçado, mas de uma humanidade invejável, passados para o personagem convence muito bem. O mérito do filme talvez esteja realmente na alquimia da dupla, que deu muito certo e nos proporcionam cenas maravilhosas.

Apesar de ser uma comédia e provocar boas risadas e cenas ímpares, O Bom Doutor tem um apelo dramático forte. Desde a dificuldade de Serge, profundamente marcado por um trauma de Natal, onde se esconde na bebida e se defende no mau humor para enfrentar a vida, fugindo dos problemas ao invés de buscar ajuda, até o drama dos novos empreendedores do nosso tempo, que com uma falsa sensação de liberdade, são explorados por aplicativos, além de serem reféns da má educação de alguns clientes, um mundo onde uma avalição por estrelinhas pode definir um futuro. Além, é claro, da precariedade e total falta de segurança no trabalho, onde por serem “empreendedores”, eles que sofram as consequências. E o filme também dá um panorama do que acontece numa noite de Natal, entre idosos solitários, pais de primeira viagem, milionários fazendo festinhas esbanjadoras, jovens estúpidos, pobres com dificuldade para pagar a consulta, enfim um panorama micro de uma diversa sociedade.

O Bom Doutor é mais um filme francês que tem como mérito, mais que nos proporcionar ótimas gargalhadas, tamanho o absurdo e humor de certas situações, sim mostrar um retrato das relações humanas, nesse caso como duas pessoas extremamente diferentes, de gerações distintas, com planos, ideias de vida e certezas tão opostas, são obrigadas a conviver nesse admirável mundo novo de hoje em dia, onde os mais velhos, simbolizados por Serge, têm dificuldade de se adaptar, e os mais jovens, buscam na marra, com as certezas de seus projetos incertos, terem seu lugar ao sol.

 

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