Crítica: O Aprendiz

Uma pergunta que sempre fazemos: como se cria o perfil e o caráter de um ser humano? Qual o cerne da transformação de um homem, ou em que passo de sua vida, começou a cristalizar e formar o que ele é hoje em dia? No caso de uma figura pública, poderosa, bilionária e que já foi presidente dos Estados Unidos, nossa curiosidade fica ainda mais aguçada. E com essa premissa, de contar como Donald John Trump passou de estafeta das empresas de construção civil e prédios de locação do pai para se tornar o megalomaníaco investidor que, gostem ou não, ajudou a mudar o perfil de uma cotoca Nova York, estreia essa semana O Aprendiz (The Apprentice, 2024), com direção de Ali Abbasi.

Numa Nova York tomada pelo crime, corrupção, sujeira e pouco glamour, Donald John Trump era um garoto ambicioso, que cansado de ser um cobrador de aluguel de pessoas pobres e exploradas nos prédios do pai, resolve entrar na alta roda da cidade. Acaba conhecendo Roy Cohn, um dos maiores advogados dos Estados Unidos, que um dos feitos foi ter enviado à cadeira elétrica o casal Rosenberg. Cohn não tem escrúpulo nenhum e acaba simpatizando com o rapaz loiro e com a gana de vencer na vida, se tornando seu advogado e ajudando os Trump a se livrar de processos que envolvem racismo e segregação nos alugueis dos apartamentos do papai Trump. Daí em diante, Donald, com seu mentor Cohn, começa a querer cada vez mais, e na base da persuasão, corrupção, isenção fiscal e alguns calotes, começa a mudar a cara de Nova York, revitalizando um antigo hotel, criando prédios luxuosos e resgatando um glamour (mesmo que duvidoso) para a então decadente cidade. Enquanto isso, aquele menino deslumbrado acaba se tornando um  agressivo investidor, que não vê limites para conseguir o que quer, transformando seus negócios em verdadeiras conquistas e  criando um senso de amor e ódio a seu respeito pela sociedade.

O meu maior medo é que muitos desavisados e com ódio do ex-presidente Trump, evitem ver o filme por questões políticas e ideológicas sem conhecer o teor da película. Ou fãs ardorosos do topetudo, também vão se sentir ofendidos com a obra. Mas sinto em informar que O Aprendiz é um gigante retrato de como se criam mitos e que com artifícios e estratégia alguém consegue subir os elevadores da vida dos negócios. No caso, Ali Abbasi nos pincela um retrato perfeito de Nova York entre 1973 e 1987. Diria, um fiel quadro da América, e como aquele jovem subserviente ao pai resolveu dar muitos passos à frente e se tornou o magnata que não tinha freio para conseguir o que queria. Com o foco no seu guru, o advogado Roy Cohn, que não tinha ética nenhuma na profissão e que com seus três passos – ataque, negação e não aceitação – moldou o caráter do jovem nova-iorquino.

Com câmeras em tons granulados às vezes, panorâmicas da cidade, closes tremidos e uma fotografia que começa sombria como a América setentista e culminando nos Estados Unidos dos anos 1980 com luzes e glamour brega, o filme vai nos mostrando passo a passo a ascensão do magnata Trump convivendo com as mudanças do país. Com uma trilha sonora fantástica, tanto a  instrumental, quanto nos sucessos da época, O Aprendiz nos conduz com maestria sobre esse cenário de caos que foi propício para o surgimento de um cidadão como Trump.

Sebastian Stan está ótimo como Donald Trump. Tanto fisicamente parecido, com os trejeitos do magnata como mexer o seu valioso cabelo, até os olhares e poder de persuasão que foi aumentando conforme o tempo (assim como peso do personagem). Um mérito do ator foi saber fazer exatamente essa escada com incrível maestria. Criar a cada passo a transformação do jovem deslumbrado no magnata inescrupuloso que foi moldando e perdendo todo o caráter e a ética com o passar dos anos. Mas é Jeremy Strong, como Roy Cohn, que tem uma atuação fantástica. A personificação do mal, na pele do advogado patriota de araque, que com sua arrogância e estratégias ilícitas faz a cabeça do jovem Trump, mas no caso do ator, ele começa como o demônio, e com o tempo e debilitado pela Aids (filme retrata bem o início da doença no mundo), acaba retrocedendo nos princípios e tenta buscar uma humanidade que Trump já não tem mais. Uma atuação digna de indicação para premiações. Maria Bakalova também brilha como Ivana Trump, a musa e maior conquista (segundo palavras do próprio), mostra ser uma mulher, mesmo com um homem poderoso do lado, muito forte e ambiciosa, formando com o marido quase uma dupla perfeita ou um dos casais mais badalados do mundo na época, tendo duas cenas ótimas como a que ela pega um táxi com as amigas e a polêmica cena do estupro em que a própria acusou o presidente, mas depois retirou a queixa.O filme foi muito criticado pelo próprio Donald Trump, o que não deixa de dar uma inveja dos Estados Unidos, já que talvez um filme desses críticos a alguém tão poderoso jamais sairia no Brasil, ainda mais se esse tal poderoso estiver vivo e querendo ser presidente (mesmo com ameaças de processos da equipe de Trump). O Aprendiz mostra de uma maneira coesa todo o processo de transformação de Donald, a desumanização do ser humano, sua ânsia por poder, ou em outras palavras, o cerne e a criação do vilão. Mas também não podem negar que Trump jovem foi o retrato de uma era e soube como poucos lucrar com  isso e conquistar poder, manter sua vaidade, status, à base de muito extremismo e preconceito, regado à muita grana com seus projetos faraônicos, mesmo que para isso tenha, com seu liberalismo de araque, isenções fiscais generosas, e dando golpes homéricos em investidores. Algo como o próprio Estados Unidos da era Reagan, que jogou sujo para conseguir seus objetivos em nome da América, liberdade, e é claro, dinheiro. Indico demais o filme, uma pequena joia que ajuda muito a entendermos quem é o ex-presidente Trump.

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