Crítica: Noite Passada em Soho

Ouve um tempo, nos anos 1960, em que cinco crias de Liverpool dominavam as paradas e o coração dos fãs da música. Sim, você não leu errado, cinco. Claro que os quatro Beatles foram mais famosos e fizeram sucesso global. Mas uma ex-garçonete do Cavern Club, que ficou amiga dos fab four e teve Brian Epstein como tutor, fez a cabeça dos britânicos, se tornando um fenômeno. Falo de Cilla Black, cantora pop com canções agradáveis, que empilhou sucessos, shows e programas de televisão, se tornando um ícone de Liverpool. Cilla era uma das cantoras preferidas de Eloise Turner, que mesmo jovem e contrariando a maré, é apaixonada por canções e cultura pop inglesa dos sessenta, e passa por estranhos fatos no novo filme de Edgar Wright, que estreia nos cinemas essa semana: Noite Passada em Soho (Last Night in Soho, 2021).

A já citada Eloise é uma sonhadora menina que vive com sua vó no interior da Inglaterra. Apaixonada por moda e os anos 1960, consegue uma bolsa para estudar em Londres. Lá tem um pouco de dificuldade de adaptação numa fraternidade de meninas e resolve alugar um quarto numa antiga residência em Soho. A partir dali Eloise, com um sexto sentido aguçado (ou seriam alucinações?), começa a ter experiências noturnas no bairro de Soho de meados dos anos 1960. Com uma atmosfera noturna que parece glamourosa e dos sonhos da menina, ela começa a viver a vida de Sandy, uma aspirante à cantora da época, praticamente uma diva, mas aos poucos, começa a ver que aquele brilho londrino esconde grandes segredos sombrios e perigosos.

Edgar Wright pode ser considerado um dos bons diretores dos últimos anos e a expectativa desse novo trabalho do inglês era deveras grande. Com um roteiro dele e de Krisyt Wilson Cairns, Edgar nos apresenta um clima de nostalgia que encanta. Com uma reconstituição que beira à perfeição dos trepidantes sixteens londrinos, temos quase uma viagem cultural, comportamental, tendo a moda e as canções como mote representativo de uma aparente inesquecível era. Se na parte visual e de clima o filme é um deleite, o roteiro às vezes peca pelo excesso e alguns furos. Quando o filme resolve entrar na sua faceta terror, ele se perde um pouco. Com excessos de cenas, digamos pesadas e frenéticas, ele perde o tom da exploração psicológica do caso, tudo é resolvido rapidamente, mas ao mesmo tempo nada é explicado. Eloise sonhava com aquilo? tinha uma estranha possessão? era tudo uma alucinação (difícil, porque a menina não usava drogas) ou um caso de esquizofrenia genética (já que sua mãe se suicidou quando ela tinha sete anos e tinha problemas mentais) começou a se manifestar na mente perturbada da estudante? Enfim, claro que o diretor não precisa explicar nada, basta ao espectador formular suas teses, mas com tantos desaparecidos, apenas o fedor de esgoto no verão podia perturbar (sem spoilers). Mas o filme, mesmo assim convence, é uma história bastante original, com eficazes efeitos visuais e uma fotografia sombria que mostra tanto o lado do glamour de Londres quanto seu lado perverso. E o clima meio de vídeo clipe, embalado com a nata da música pop da época, ajudam o espectador a entrar na história. A primeira cena, em que Eloise volta ao tempo e para no Soho de metade dos 1960, já com a aparência de Sandy é de um primor visual incrível, com destaque a alusão ao filme 007 Contra a Chantagem Atômica no cinema, uma entrada da personagem da boate, descendo as escadas e um show da pop star Cilla Black. Cena refinada, nostálgica e de excelente bom gosto. Aliás, as atrizes do filme convencem bem, Thomasin McKenzie, como a sonhadora e interiorana Eloise, consegue se transformar na película, de inexperiente menina do interior a deslumbrada e obcecada por Sandy e praticamente lunática com a estranha situação que vive. Anya Taylor-Joy, apesar de um pouco caricata, mas talvez por isso funcione, dá vida à divina, maltratada e misteriosa Sandy de 1966, numa atuação que não compromete. Terence Stamp, veterano dá se ar como Jack, misterioso e outrora mulherengo, que vive perambulando como sombra em pubs do Soho. Michael Ajao, como John, colega e apaixonado por Eloise, também tem um papel que no final se faz importante, o mesmo com a veterana Diana Rigg, como Miss Collins.

Não tem como fugir um pouco de certas influências que devem ter inspirado o diretor, a trilogia do apartamento de Roman Polanski (O Inquilino, Repulsa ao Sexo e Bebê de Rosemary), com um terror psicológico de ambiente e Inverno de Sangue em Veneza, de Nicolas Roeg, com sua atmosfera sombria e soturna. Mas como já afirmei, sobraram excessos e sustos fáceis e faltou uma consistência mais verosímil ao desfecho, ficando o gosto que algo faltou. Mesmo com uma construção psicológica ao drama de Eloise, faltou um pouco de sentido e uma decisão de sobre o que realmente estava ocorrendo por ali.

Mesmo assim, Noite Passada em Soho, dentro de uma infinidade de filmes ruins, consegue ser interessante, nos dá uma viagem no tempo a uma deliciosa época da musica pop, onde Londres era o centro do universo, tanto cultural quanto fashion, temos um roteiro original, que mesmo com falhas, prende o espectador com um terror psicológico em ritmo alucinante e um visual deslumbrante e retrô, de uma época em que esconder seus mistérios no armário e debaixo do piso parecia uma bela solução…

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