Crítica: No Ritmo do Coração

Children of Deaf Adults, ou mais conhecido como Coda, é a condição de filhos ouvintes de pais surdos. Um Coda é exposto a dois mundos desde cedo. No mesmo tempo que convive com uma família que tem a comunicação toda por sinais, também tem que se inserir numa sociedade ouvinte. Para isso eles recebem bastante apoio de organizações e grupos especializados para ajudar a essa adaptação tão complicada de dois ambientes distintos nas suas vidas. Um filme francês de 2014, chamado A Familia Bélier (La Famille Bélier), contava um caso de uma menina que era ouvinte e tinha toda família surda, e ao mesmo tempo em que queria partir para sua vida independente, sentia que não podia deixar seus pais sem sua ajuda como intérprete. Sian Heder resolveu fazer um remake norte-americano para a película francesa, que pode ser conferido no Amazon Prime, com o nome de No Ritmo do Coração (Coda, 2021).

Na fria cidade de Gloucester, Massachusetts, uma família vive harmoniosamente da pesca. Enfrentando os mares gelados, pai, irmão e irmã, madrugam nas geladas águas através do sustento. Da família, apenas Ruby não é surda, e serve como uma intérprete nas intermediações das vendas dos peixes. Mas Ruby que adora música e gosta de cantar, quando resolve se inscrever no coral da escola, conhece o professor Bernardo Villalobos, exigente mestre que vê potencial na menina, de maneira às vezes rude e com extrema cobrança, faz seu talento vocal despertar. Mas aí vem o dilema na vida da menina: ao mesmo tempo em que quer buscar seus sonhos e sua independência através da música, algo tão desimportante na vida de sua família, devido à surdez, precisa fazer com que eles não dependam tanto dela para as coisas mais básicas da vida, porque ela sempre foi uma espécie de cajado para eles.

Sempre que falamos de uma refilmagem, ainda mais tratando de uma adaptação americana para um filme europeu, é natural pensarmos que virá uma bela bomba. Surpreendentemente, No Ritmo do Coração consegue ser um bom filme, com um tema pesado, mas nunca passando pro lado da pieguice e da emoção barata. Sian Heder teve uma sensibilidade única de transformar o que poderia ser uma trama dramática em um tocante e divertido filme. Claro que o filme tem os clichês básicos, até por se tratar de um filme com cara de teen, temos os dramas de toda a menina em uma escola, como timidez, busca do primeiro amor, bullying, brigas com amigos, um professor durão e às vezes caricato, um clima meio Glee (que o filme até mesmo faz uma piada como referência), mas tudo isso inserindo a personagem numa família de surdos. E os três atores do filme que fazem o pai, a mãe e o irmão de Ruby são surdos, acredito que mais da metade do filme seja em linguagem de sinais, dando um tom realista e inclusivo incrível ao filme.

Emilia Jones, como Ruby, manda muito bem, carregando nas costas a sua realidade de viver a vida como uma adolescente cheia de sonhos e com um talento para a canção, mas tendo que ser, literalmente, os ouvidos dos pais, a jovem atriz atua de forma esplendorosa, tendo que ser dura nas duas realidades. Marlee Mattlin, que faz a sua mãe Jackie Rossi, foi uma pioneira sendo a primeira surda a receber um Oscar pelo filme Filhos do Silêncio, em 1984. Ativista da causa, também só participou do filme com a condição que a família toda fosse interpretada por surdos. Daniel Durant, como Leo Rossi, irmão de Ruby também tem seu brilho, mas quem rouba o filme mesmo é Troy Kotsur, como Frank Rossi. Troy criou um personagem típico pescador, brincalhão ao extremo, totalmente família e por vezes até egoísta com os sonhos da filha, uma atuação marcante e indicada ao Oscar de Ator Coadjuvante. Eugenio Derbez, como Bernardo Villalobos, o professor rigoroso que cobra ao extremo de Ruby, se perde nos clichês típicos desse tipo de personagem, cheio de trejeitos, frases prontas, em uma atuação quase caricata.

No Ritmo do Coração é um filme basicamente sobre decisões e sonhos. De quanto, por mais que as intenções sejam ótimas, nos vemos numa encruzilhada entre seguirmos onde o vento nos levar ou ficarmos na zona de conforto da nossa vida. Escolhas difíceis, onde é necessário colocar os prós e contras na balança. Diferente de O Som do Silêncio, onde a surdez era tratada como um drama perturbador e a ausência do som incomodava mais que o barulho, Sian nos apresenta a surdez jamais como uma deficiência e sim uma limitação, e em nenhum momento faz a gente ter pena dos Rossi por essa condição, eles são uma família como todas as outras, com muito amor, companheirismo e batalha, mas também são egoístas, fechados em seu mundinho, além de cobrarem demais da filha. Um momento marcante dessa indiferença, fruto da condição da família da menina, é a cena quando Ruby se apresenta na escola para cantar e os Rossi vão assistir. No momento em que ela canta, o som some do filme para vermos o quanto a música, que tanto emociona o ouvinte e o restante da plateia, para um surdo não tem importância quase alguma. Um momento marcante muito bem dirigido de um realismo ímpar.

Concluindo, é um filme que encanta, trata um tema que com uma direção pesada podia transformar tudo num dramalhão lacrimejante, mas que no tom certo mistura humor, comunicação, família e sonhos de uma forma leve, muito inclusiva e sem querer inventar demais, nos dá uma diversão agradabilíssima e certeira.

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