Crítica: Mulher Rei

Benin é um país da costa oeste africana, com mais de 10 milhões de habitantes, tem como língua oficial a francesa, faz fronteira com a Nigéria, a Burkina Faso e o Togo. Benin, antes de ter esse nome advindo de sua independência do jugo francês, foi um reino, o Reino de Daomé, entre 1600 e 1900. E vivia muito do comércio de escravos com os portugueses. Aliás, as relações entre Benin e Brasil eram bem amistosas, sendo o reinado africano o primeiro país a aceitar a independência do Brasil de Portugal. E a história dos dois reinados, o brasileiro e o africano, ficou com essa triste lembrança comercial de tráfico de escravos. Daomé aguentou seu reinado até o fim do século XIX, quando foi subjugado pelos franceses, mas uma história característica desse incrível reinado negro aconteceu em 1823, onde guerreiras mulheres, as Agojie, faziam a guarda real e defendiam o reinado nas lutas contra os inimigos do império Oyo, história essa contada pela diretora Gina Prince-Bythewood no monumental épico Mulher Rei (King Woman, 2022).

Na África Ocidental, o Reino de Daomé vive em constantes guerras contra reinados vizinhos e a General Nanisca lidera um grupo de elite de mulheres guerreiras, as temidas Agojies. Em um breve momento de paz, elas, com ordens do Rei Ghezo, recrutam novas meninas para entrar no grupo. Uma delas é a Nawi, corajosa garota, que ao contrariar o pai e não querer se casar por obrigação com um fazendeiro, acaba sendo expulsa de casa e mandada para o Rei, começando ali seus treinamentos, fazendo amizades com Izogue, umas das guerreiras treinadoras. Nesse mesmo tempo, a costa da escravidão anda movimentada e mercadores portugueses e brasileiros querem fazer negócios com o Rei e comprar cativos, o que faz com que a própria população de Daomé acabe questionando esse cruel comércio, mas as Agoijes também têm que se preocupar com as constantes ameaças dos Oyo, império rival que pretende conquistar Daomé e escravizar o seu povo.

Fantástico épico com todas as fórmulas perfeitas do gênero: um fato histórico, um reino guerreiro, muita ação, reviravoltas, personagens (tanto os principais quanto os secundários) relevantes, uma crítica ao horror escravocrata, romance, um fato do passado que abala o presente, e no caso, um dos melhores filmes de empoderamento feminino recente, através das fantásticas Agoijes, ou como os portugueses e brasileiros chamavam, as Amazonas africanas. Com roteiro de Dana Stevens, que usa uma história dela e de Maria Bello (que também é produtora, juntamente com Viola Davis), a diretora Gina Prince nós dá uma aula de direção, com cenas de ação frenéticas, muita violência e agressividade, uma fotografia esplêndida e nos conta uma história pouco conhecida (infelizmente o passado da África, de uma riqueza exemplar, é quase desconhecido pelo ocidental), mas arrebatadora e com algumas licenças poéticas e históricas, consegue com excelentes atuações nos prender do início ao fim. A trilha sonora de Terence Blanchard dá o tom certo paras as violentas e acrobáticas cenas de ação, com destaque à primeira aparição delas num combate noturno, a guerra com os Oyos e o final apoteótico, com a destruição do porto escravocrata. Imagens vibrantes muito bem coreografadas e realistas. E uma reconstituição de época de primeira, ainda mais lembrando a questão da escravidão, um assunto tão triste e cruel do passado recente, mostrado com uma crueza de imagens, com os cativos acorrentados, expostos nos postos comerciais, a verdade exposta aos nossos olhos.

O time de atrizes e atores também está muito bem escalado. Viola Davis, como sempre, desfilando talento como a quase impiedosa Nanisca, líder das guerreiras, esbanjando coragem e força, mas que carrega, além das cicatrizes físicas, cicatrizes psicológicas mal resolvidas do seu passado, o que talvez possa explicar seu estilo amargo de vida. Thuso Mbedu é uma baita surpresa, atuando como Nawi. A menina corajosa, e às vezes petulante, conquista tanto com suas habilidades na arte do combate quanto na sua coragem de enfrentar e questionar algumas certezas do local, provocando a ira de Nanisca, e também seu respeito. Lashana Lynch, como Izogue, a treinadora das meninas, faz meio que o papel de irmã mais velha de Nawi, a ensinando de uma maneira mais humana e até divertida os segredos das guerreiras, tendo as duas uma química muito boa. Sheila Atim, como a fiel escudeira de Nanisca, Amenza, também tem um papel de destaque. John Boyega, como Rei Ghezo, não compromete, mas tem pouca relevância em um filme de mulheres, o mesmo vale para Hero Fiennes Tiffin, que faz o brasileiro, filho de mãe de Daomé com pai português, personagem Santo Ferreira, que tem uma certa queda por Nawi e questiona o comércio de escravos. Vale sua participação para ver atores falando português num filme norte-americano, o que não deixa de ser bem curioso, mas que também meio que remexe nossas feridas e mostra o quanto o Brasil teve importância nesse cruel comércio de cativos negros.

Mulher Rei, se tem como elencar alguns pequenos defeitos, talvez seja a pieguice da parte final, onde vemos uma certa humanidade e fraqueza em Nanisca, que não acreditavam ter, e perde muito tempo nesse desenvolvimento entre ela e Nawi. Os questionamentos do fim do tráfico escravista pelo Reino de Daomé também soam um pouco falso, porque era rentável demais para o império, escravizar e vender os seus cativos para a América, mas fora isso, o filme é um épico excelente, com muita ação, um visual deslumbrante, uma história que prende do início ao fim, um balé corporal de lutas das Agoijes nas batalhas sem fim, uma personagem forte, a General Nanisca e um empoderamento feminino e de mulheres negras merecidíssimo, além de contar com belas tintas e dar o real valor à história africana e o lendário Império de Daomé.

 

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