Crítica: Minha Vida Além do Circo

Uma coisa a vida ensina ao ser humano: se você tem filhos, são grandes as chances de projetar a sua vida neles, ou melhor, achar que suas verdades e modo de viver serão bússolas para eles. Isso é um ledo engano. Os filhos são da vida, e a vida é, literalmente, um livro aberto. Um filme canadense que explora esse eterno conflito de gerações é o bonito e divertido Minha Vida Além do Circo (Mon Cirque a Moi), de 2020, da canadense Míryam Bouchard, que pode ser conferido nas plataformas Now, Vivo Play, Apple Tv e Google Play.

Bill é um artista circense, um palhaço à moda antiga, que segue pelo Canadá com seus espetáculos, na companhia da filha Laura e seu assistente Mandeep. O problema é que Bill é um eterno inconformista e não separa bem seu personagem da sua vida real, sempre levando a vida na flauta. Já Laura está cansada de tudo isso e queria ter uma vida, digamos, normal, estudando, tendo um lar e quem sabe até entrando numa escola particular comandada por religiosos. Bill não consegue entender como sua filha, que tem toda a liberdade na vida, queira trocar isso por uma conservadora disciplina educacional e religiosa, mas Laura está disposta a isso e ganha o apoio da professora Patrícia, que lhe ajuda a melhorar os estudos para entrar na tal escola, deixando seu pai abismado com a escolha da filhota.

Minha Vida Além do Circo, da diretora Miryam Bouchard, tem uma simplicidade cativante embrenhado em um tema espinhoso: o conflito de pais e filhos. Às vezes os pais têm a dificuldade de entender o quanto suas escolhas são egoístas e seus filhos não têm que aplaudir qualquer passo imposto por eles. No caso, Bill, um cara super bem-humorado, que vive viajando com os shows, dá uma liberdade incrível à filha, com uma vida sem regras, mas que por vezes beira à imprudência, seria na cabeça de muitos a personificação do pai perfeito. Mas Laura, sua filha e órfã de mãe, por mais amor e companheirismo que tem pelo pai, quer novos rumos na vida, quer uma vida mais sólida, um futuro um pouco diferente do pai, estudar e, quem sabe, por mais irônico que seja para uma adolescente: ter regras. Todo esse conflito é extremamente bem conduzido com uma direção segura da Miryam, que em nenhum momento puxa para um lado do que é certo ou errado, apenas apresenta para o público os prós e os contras das escolhas, com leveza e nunca puxa pro dramalhão. Bill, interpretado por Patrick Huard, e Jasmine Lemée, como Laura, ajudaram muito na química dos personagens, ele muito engraçado na pele do palhaço, e na vida real, com sua doce irresponsabilidade, muitas vezes egoísta e Jasmine ótima como a corajosa Laura, que faz um papel às avessas, que ao invés de enfrentar um pai autoritário em busca da liberdade, confronta com um pai libertário até demais, que ela nunca deixa de amar, mas apenas quer ter sua vida própria. Sophie Lorain está ótima como a professora Patrícia, sempre com seu ar blasé e irônico, que ao seu jeito, ajuda Laura a buscar seus sonhos.

O filme também presta a sua homenagem ao mundo do circo, mas aquele circo humanizado, mambembe, que vai de encontro ao povo, personificado no palhaço Bill, que sobrevive por teimosia na sua arte verdadeiramente popular. A trupe, entre pai, filha e o ajudante Mandeep, faz questão de levar a alegria para diversas localidades, com sua maneira independente, contando com o apoio do povo e pouca vontade das autoridades.

Minha Vida Além do Circo pode parecer um despretensioso filme, mas trata de uma forma original essa rusga histórica entre pais e filhos, no caso, não é bem uma rusga, apenas uma ânsia de uma filha de querer fazer o que todos fazem, mesmo tendo a oportunidade de ter uma vida diferente, que talvez muitos sonhariam em ter. Muito bem filmado, com atuações muito boas, nunca caindo pro dramalhão, apenas apresentando os dois lados, é uma bela diversão que faz o espectador refletir, pois afinal, às vezes, ser diferente demais cansa e para amar alguém não precisamos ser iguais, apenas precisamos respeitar ambos os lados e tentar achar uma simetria.

 

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