Crítica: Millennium – A Garota na Teia de Aranha

O jornalista sueco Stieg Larsson fez bastante sucesso (póstumo, já que morreu em 2004) no fim dos anos 2000 com o fechamento de sua trilogia de livros Millennium (Os Homens que Não Amavam as Mulheres, A Menina que Brincava com Fogo e A Rainha do Castelo de Ar), que tinha como protagonista a hacker e investigadora particular Lisbeth Salander. A personagem tinha um significado especial para o autor e sua origem misturava um caso real de estupro envolvendo uma adolescente com o mesmo nome e uma personagem infantil sueca, Píppi Meialonga. A mistura resultou numa mulher já adulta que dedica seu tempo e trabalho aplicando “justiça” rígida para estupradores e misóginos, uma necessidade que se liga ao próprio passado de abusos que sofreu durante a infância e boa parte da vida adulta.

Inserida em três histórias típicas de thrillers policiais e de suspense, ela é a anti-heroína problemática, genial e antissocial que desperta magnetismo imediato ao investigar mistérios envolvendo muitos detalhes e reviravoltas, tendo como ferramenta principal a habilidade com a tecnologia. Essas são características encontradas tanto na adaptação sueca para os cinemas (a trilogia foi lançada toda em 2009), interpretada por Noomi Rapace, quanto na versão hollywoodiana de 2011, dirigida por David Fincher e com Rooney Mara no papel de Salander. Agora com Millenium: A Garota na Teia de Aranha, adaptação do 4º livro, escrito por David Lagercrantz, ela tem uma mudança de cara e de abordagem, muito mais próxima de um produto mais quadrado cujas qualidades anteriores foram diluídas em algo, infelizmente, bem mais genérico.

Não que elas não estejam ali. Lisbeth Salander (Claire Foy) apresenta grande facilidade para quebrar a segurança de sistemas virtuais e manipular diversos dispositivos tecnológicos, por isso é procurada por Frans Balder (Stephen Merchant), um desenvolvedor que vendeu para os EUA um software poderoso capaz de controlar um arsenal bélico mundial. Após perceber o perigo, ele necessita da ajuda de Salander para recuperar o programa enquanto é perseguido por um grupo misterioso que também está atrás de sua criação. Acostumada a viver às escondidas, ela também é obrigada a correr novamente contra o tempo para limpar a própria imagem e tentar impedir a iminência de um desastre, contanto com a ajuda do jornalista Mikael Blomkvist (Sverrir Gudnason) e à sombra de um passado traumático envolvendo sua família.

Embora alguns elementos sugiram acontecimentos passados com alguns personagens, o roteiro, escrito por Jay Basu, Steven Knight e Alvarez, foi feito para reapresentar o universo ao público sem a necessidade de conhecer nada do material de origem. É também possível dizer que, além de inserir e sintetizar as origens da protagonista, a história também abandona a pegada no mistério e investigação para dar lugar a uma ação mais intensa e uma trama bem mais linear. Lisbeth está muito mais para James Bond e Ethan Hunt do que para a investigadora que fora anteriormente, o que tira boa parte do diferencial em relação a tantas outras obras similares. O suspense envolto numa atmosfera angustiante e repleto de personagens multidimensionais fica para trás das perseguições de carro e moto, além de testar os limites a ponto de confundirmos Salander com alguma ex-combatente com treinamento militar.

O que por si só não seria problema algum, mas o caso é que a escolha recai numa série de lugares comuns do gênero apoiados num roteiro que pouco envolve em relação a sua trama e seus personagens. A ameaça novamente é de um grupo que tenta colocar as mãos numa arma poderosa com motivações maldosas, contando com o apoio de vilões caricatos e capangas mais ainda. A única preocupação com o antagonismo só aparece mais à frente (não darei spoilers) em forma de consequência a um acontecimento específico cujo o peso acaba tendo que recair em exposições apressadas – aliás, um outro fator negativo da obra, que recorre aos diálogos explicativos sempre que precisa estabelecer rapidamente informações que serão intercaladas por cenas de ação e perseguição. Essa estrutura tem como consequência tirar da narrativa o poder de pista e recompensa em um roteiro, uma ferramenta que justamente instiga o espectador a usar elementos pontuais na história a fim de criar expectativas para suas resoluções. O que temos, portanto, é uma experiência bem passiva e esquecível.

Claire Foy (The Crown, O Primeiro Homem) como Lisbeth Salander

Desse modo, sobraria uma direção que se propusesse a dar energia visual e dinâmica para a narrativa. A tarefa fica para Fede Alvarez (A Morte do Demônio, O Homem nas Trevas), que tem como peso ingrato uma versão passada com a precisão cirúrgica habitual de um dos melhores diretores em atividade hoje, David Fincher. Não que ele tivesse qualquer obrigação de manter o mesmo estilo (um filme só depende de si mesmo), mas é inevitável que um tem a habilidade de se diferenciar em qualquer gênero e o outro acaba ficando no conforto. Fora um ou outro momento em que a câmera procura manter uma movimentação que busca dar um plus visual (alguns planos longos e travelling mais inspirados), o restante é um arroz com feijão razoável eventualmente prejudicado por uma montagem picotada em sequências que ocorrem em ambientes mais fechados (como confrontos em banheiros e cativeiros). Sutileza também não é lá um forte do longa, como exemplo ao mesmo tempo que temos uma fotografia esteticamente caprichada praticamente toda filtrada no frio da Suécia, o antagonista principal surge num vermelho exageradamente destacado do resto como se gritasse “estão vendo!? Eu sou o malvado aqui! ”.

A questão da superficialidade também afeta a forma como nos ligamos (ou tentamos) com outros personagens. O agente da NSA que é responsável por recuperar o software, Ed Needham (Lakeith Stanfield), até ensaia uma promessa a mais pelo carisma do ator (veja-o na série Atlanta), mas fica definido por uma ou duas características convenientes à trama. Pior ainda é Mikael Blomkvist, que vai de importante nos livros e nos outros filmes para uma participação absolutamente apática de Sverrir Gudnason e beirando à inutilidade total – para isso, basta fazer um breve exercício ao término da sessão e contar quantas vezes suas funções no roteiro poderiam ter sido facilmente suprimidas ou condensadas em outro personagem (Needham, por exemplo) sem que prejudicasse de qualquer modo a história. Por tabela, isso também torna a ligação emocional com Lisbeth igualmente desinteressante, o que acaba por isolá-la como o único motivador da narrativa.

O que eleva um pouco nosso engajamento é que Claire Foy tem talento para usar o que tem em mãos para dar alguma substância à protagonista. O efeito parece afetar, inclusive, o próprio roteiro, de forma que seus momentos mais corretos giram em torno da construção da personagem. Aqui a exposição vai embora e aprendemos traços de sua personalidade através de conversas indiretas e pequenas atitudes reveladoras: a forma como ela tende a dispensar manifestações de afeto e tentativas de monólogos baratos de outros personagens através de um pragmatismo que a torna “fria” aos olhos dos outros. Essa característica se contrapõe de forma interessante quando a atriz permite que vejamos a vulnerabilidade de Lisbeth apenas o suficiente sem que pareça uma mudança brusca de personalidade. O fato de que talvez ela não seja lembrada como Rapace e Mara se deve muito mais a um filme mediano do que por méritos próprios.

O que se estende ao fato de que, ao término do filme, fica a vontade de ver a atriz com a mesma personagem em uma continuação mais inspirada do que essa. Como não li o livro de Lagercrantz, não posso afirmar se o material original manteve o legado de Larsson, mas mesmo assim, uma adaptação só depende da própria mídia em que está. Talvez pensem nisso se forem dar continuidade ou começar tudo de novo.

Nota: 2,5/5

Trailer

Data de lançamento: 08 de novembro de 2018 (1h57min)

Direção: Fede Alvarez

Elenco: Claire Foy, Sverrir Gudnason, Sylvia Hoeks, Lakeith Stanfield, Vicky Krieps, Stephen Merchant

Sinopse: A jovem hacker Lisbeth Salander (Claire Foy) e o jornalista Mikael Blomkvist (Sverrir Gudnason) se veem em meio à uma teia de corrupção, espionagem e intriga internacional, juntando forças para combater uma nova e terrível e ameaça.

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