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Crítica: Meu Filho, Nosso Mundo

Sou de uma geração que nos anos 1980 se surpreendeu e (por que não?) se assustou com o filme Rain Main. O oscarizado clássico de Barry Levinson, que contava a conturbada relação entre Tom Cruise e Dustin Hoffman, que fez magistralmente um papel de autista, mostrou ao mundo o cotidiano e o universo particular de portadores desse espectro. Confesso que no alto dos meus 10 anos me assustei com a condição e com a ilusão de que aquela realidade era tão distante e rara. Agora peço licença para transpor o crítico Lauro Roth para o pai Lauro Roth. Anos depois, a vida me presenteou com uma jóia rara de nome Benjamin, que está no espectro autista e me faz aprender que cada dia é um dia, um aprendizado e uma troca. Não me surpreende então, nessa condição de pai de um menino atípico, que o filme que estreia essa semana, tenha me tocado demais no coração, falo do filme Meu Filho, Nosso Mundo (Ezra, 2023), do diretor Tony Goldwyn.

O filme conta a história de Max Brandel, um comediante fracassado que vive com seu pai, Stan, um homem amargurado e com muitas arestas para aparar na vida. Max era casado com Jenna e juntos tem um filho autista, o menino Ezra. Como todo ser humano atípico, ele tem suas dificuldades próprias e sua visão particular de mundo, o que o faz ter dificuldade de se inserir numa escola, digamos assim, “normal” e o que faz sugerirem que ele seja transferido para uma escola especial para fazer tratamento a base de remédios. A mãe logo aceita a condição, mas Max, teimoso, tem dificuldades de aceitar a condição de Ezra e passa a questionar o tratamento forçado, fazendo com que, devido a sua índole violenta, seja proibido de ver o filho. Mas Max queria que o filho tivesse uma nova visão de mundo, então ele “sequestra” o menino e ambos partem para uma road trip pela pelos Estados Unidos, para desespero da mãe do garoto e do pai de Max. Mas a viagem serve como uma conexão amorosa e desafiadora entre pai e filho, além de servir como destino para uma possível participação de Max, humorista, no programa de Jimmy Kimmel, em Los Angeles.

Com direção de Tony Goldwyn e um roteiro afiado de outro Tony, o Spiridakis, poucas vezes a condição do autismo foi tão bem retratada no cinema. E eu sei por experiência própria. Mesmo com toda a sensibilidade de imagens e ações, não maquia o tema e mostra as dificuldades, o preconceito, a negação de quem vive a criação de um filho atípico, o dia a dia e as cansativas rotinas e particularidades do espectro. Desde os embates da maneira de se tratar o assunto, às necessidades extremamente únicas das crianças nessa condição, que muito da sociedade não entende ou procura não compreender. O filme tem a veracidade necessária porque muitos da equipe tem experiências com filhos autistas, o próprio Robert De Niro tem um filho no espectro e passou muitas informações para a produção. Essa tal profundidade é essencial para vermos Meu Filho, Nosso Mundo como a arte imitando a vida, tudo isso filmado de uma maneira comovente e realista. O roteirista Spiridakis e o produtor William Horberg, também com filhos com o TEA, ilustraram com  tintas vivas e fortes a trama.

O menino Ezra é interpretado por William Fitzgerald (logicamente autista) e dá um show como um menino em busca de conectar seu mundo ao mundo. Desde o asco à banana, o medo de experimentar algo novo, o autoflagelo, a dificuldade do toque e do abraço e a vida sem hipocrisia, onde a verdade e o sentimento é sempre dito, mas a busca pelo amor dos pais está ali, na construção do personagem doce e tocante que é Ezra. Bobby Cannavale também está ótimo como o paizão que faz de tudo para proteger o filho, mesmo duvidando e sendo cético a algumas coisas (a aceitação é um processo dolorido, mas libertador quando alcançado), com seu bom humor faz aquela reconexão entre pai e filho e também tenta aparar os fantasmas do passado com seu briguento pai, Robert de Niro, que por mais que agia com violência com o filho, sempre se dedicou a criá-lo sozinho, sofre profundamente por ter sido um pai tão violento no passado (De Niro sempre ótimo e menos De Niro como de costume) e hoje vê no neto a chance de uma reconciliação. Rose Byrne está ótima como Jenna, uma mãe batalhadora, que sempre busca o melhor para o filho, em um processo de aceitação mais avançado que Max, mas que também entende da necessidade de aproximar Ezra do mundo real e furar a sua bolha protetora. Vera Farmiga faz uma amiga de Max, chamada Grace, que acolhe o pai e o filho nas suas fugas pelos Estados Unidos e Whoopi Goldberg é Jane, a produtora de Max, em um discreto papel.

Pra não dizer que o filme não tem falhas, agora falando cinematograficamente, o humor é mal explorado, já que ele é vendido como uma história de drama cômico, e algumas soluções no final do filme não fogem da pieguice básica do gênero, com algumas situações que poderiam ser evitadas, mas que não comprometem a tocante e realista história de amor que é o filme.

Em uma das cenas, Max perde a paciência com o filho Ezra e quase vai às vias de fato com violência contra o menino, mas graças a uma ligação com o pai, Stan, se acalma, já que o pai, que sofre até hoje por ter batido nele, fala que temos que fazer qualquer coisa, se amarrar, se morder, bater a cabeça, mas jamais bater ou usar a violência numa criança. E só quem vive esse cotidiano sabe o quanto nossa vida é um pisar em ovos, uma montanha russa emocional que apenas com uma boa cabeça podemos enfrentar. Meu Filho, Nosso Mundo já entra naquele panteão de filmes tocantes e marcantes, e se mexe com qualquer ser humano que tenha um coração, imagina para quem vive essa luta diária, onde só o amor serve como combustível para essas adversidades e desafios que são para sempre. Um filme de reconexão, de resiliência e respeito. Três palavras com R que são fundamentais para seguir em frente e entender a missão única que é ligar esse dito normal mundo ao mundo particular de um autista, também entender que nem sempre o mundo ideal para ele é fora do seu mundo, mas que é importante demais tentar mostrar, através de pequenos detalhes e desafios, que existe um outro mundo que pode viver de mãos dadas e de preferência  com um abraço apertado (se ele permitir) junto ao seu incrível universo.

 

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