Se um potencial espectador lê a sinopse que é divulgada na imprensa do filme Marte Um, por divergências políticas ou por achar que estará à frente de um filme extremamente e infantilmente panfletário, pode acabar perdendo a experiência de assistir um dos filmes mais belos, humanos e realistas da nova safra do cinema brasileiro. O momento histórico narrado na tal sinopse pouco importa para mostrar uma realidade nua e crua e extremamente verdadeira do povo brasileiro. Gabriel Martins, o diretor, com uma simplicidade e um roteiro excelente, conduz essa linda joia do cinema moderno que ainda está em cartaz e, quem puder, confira e tenha essa experiência de assistir esse filme no cinema.
Deivinho é um garoto bom de bola, mas apaixonado por física e pelo espaço, mora com a família na periferia de Contagem, Minas Gerais. Wellington, seu pai, alcoolista que está há quatro anos longe da bebida, é um chefe de família com emprego de zeladoria em um edifico chique, e apaixonado pelo Cruzeiro, tem o sonho que seu filho seja um craque de bola. Tércia é sua mãe, empregada doméstica, que vive na corda bamba em seus empregos, mas está à beira de um ataque de nervos, pânico e à beira de explodir. Eunice é sua irmã, prestes a se formar em direito e que está completamente apaixonada por Joana, uma colega, e pretende se casar com ela, mas tem medo de contar à família.
Com um enredo simples e direto, Gabriel Martins conta uma história que de tão comum poderia parecer banal (se tivesse uma direção ruim e um enredo complicado), ele consegue através da história da família mostrar um retrato do Brasil, aquele Brasil que sua, trabalha, pena, sofre e tem sonhos, que luta, balança, mas não cai. A sensibilidade do diretor de mostrar para nós, sem maquiagem, esse universo é o maior mérito do filme. E como disse antes, é crítico sem ser panfletário, não canoniza o povo só por ser humilde e com cenas tocantes, cotidianas, com drama na hora certa e humor na medida, cativam o espectador.
Cada personagem tem uma importância tremenda no enredo, Cícero Lucas é Deivinho, garoto inteligente, sensível, que tem o sonho de desbravar o universo e colonizar Marte, com a expedição Marte Um, mas antes precisa vencer seus medos e enfrentar seu pai, que ao invés de ver o menino nos campos de Marte, sonha e praticamente obriga o garoto a desfilar seu bom talento nos areiões da várzea para vê-lo com as cores do Cruzeiro no Mineirão. Rejane Faria está ótima também como Tércia, batalhadora, de bem com a vida, mãe leoa, que acha que pode abraçar tudo mas é gente como a gente e começa a surtar com situações cotidianas, sofre de pânico, insônia e ansiedade, e demora a acreditar nisso tudo. Carlos Francisco dá vida a Wellington, pai de família de bom coração, trabalhador exemplar, especialista em plantas, faz de tudo pelo emprego e pela patroa e vive 24 horas a cada dia nos últimos quatro anos, fugindo do seu alcoolismo. Viciado em futebol, o cruzeirense fanático não vê caminho melhor para seu filho que ser jogador e acha bobagem o seu amor pelo espaço, e seu conservadorismo de homem comum provoca medo na sua filha Eunice, interpretada por Camila Damião. Ela, apaixonada, tem medo de revelar pra família que ama uma colega, mesmo sendo quase uma advogada em busca de sua independência.
Umas das cenas mais bonitas do cinema nacional recente é quando Eunice e Joana pegam em uma imobiliária a chave de uma cobertura em um bairro chique para “olhar” o apartamento, elas protagonizam uma linda cena de amor ao som do clássico Saigon, lirismo e poesia em belas imagens brilhantemente captadas. O filme cativa tanto que um simples carteado de família é de um realismo incrível e cada situação do filme é tão bem escrita que parece que estamos vendo os vizinhos pela janela, tamanha naturalidade das situações. A sinopse do filme conta que a trama se passa na virada de 2018 para 2019, quando Bolsonaro assume a presidência, mas o que poderia ser um filme que usaria esse artificio fácil da crítica política para angariar militantes, no filme é apenas um detalhe, nesse Brasil que está em constante crise e o povo simples é o primeiro a sofrer na pele esses desmandos do poder. Curiosas as participações do ator Toquinho, anão que participa de programa de televisão e do jogador argentino Juan Pablo Sorin, como ele mesmo, ex-craque do Cruzeiro, que ajuda Wellington a tentar uma chance ao Deivinho no clube.
Marte Um é um filme que fala sobre família e como, às vezes, devido aos pais não entenderem os filhos, ou acharem que pobre só vence na arte ou no futebol, castram sonhos e não entendem que ali na sua frente pode ter um potencial incrível de ao invés de usar as pernas para se destacar, podem usar o intelecto para ser feliz. O mesmo para questões como a família tradicional aceitar uma filha lésbica, achar que ela não é normal e está fazendo algo errado. Heranças de um Brasil conservador, machista e conformista que o filme nos apresenta muito bem. A questão do alcoolismo também é muito bem desenvolvida no filme e o quanto cada dia é importante para vencer o vício, se livrando do primeiro copo. Um filme que mexe com os sonhos e a realidade e como a frustração pode mexer com o cotidiano de uma família, mas o amor ainda pode ser a saída de muita coisa. E como para o brasileiro cada dia é uma glória de luta e busca de sobrevivência, não só aquela que serve para pagar os boletos, mas para entender e viver essas transformações do mundo. A família de Deivinho, Wellington, Tércia e Eunice é apenas um microcosmo nesse incrível universo, mas que para eles ou para qualquer família, tem a dimensão de Contagem, Minas Gerais, Brasil ou até de Marte.