Obs: devido à impossibilidade de discutir o filme da maneira completa como eu gostaria sem revelar detalhes da trama, dividirei o texto em duas partes: esta primeira será sem spoilers e, na segunda, discutirei minha interpretação juntamente com a leitura geral que tenho acompanhado depois das primeiras sessões.
“E agora, como é que eu faço? ”
Foi o que passou pela minha cabeça quando eu saí da sessão de Mãe!, novo filme do excelente Darren Aronofky (responsável por Cisne Negro, que considero uma obra-prima do cinema pós anos 2000). Era de se esperar que minhas expectativas dessem um pouco o ar da graça, até para mim, que aprendeu bem a controlar esse aspecto ao longo dos anos. A pergunta martelou na minha cabeça, e não exatamente por causa da complexidade da trama desenvolvida ao longo da projeção, e sim por me fazer questionar o peso que damos na experiência de assistir a um filme.
Uma coisa eu sei: aproveita-se bem mais o potencial do cinema quando aprendemos a crucial diferença entre narrativa e história. São conceitos comumente confundidos até por quem é cinéfilo, mas eles têm diferença e dizem muito sobre o que o cinema nos dá como objeto de apreciação. História diz mais sobre o que é um filme, um conceito abrangente se refere aos acontecimentos em si dentro de um filme. Já a narrativa é sobre como essa história se desenvolve e, principalmente, como a rica linguagem do cinema constrói a experiência visual e sonora do expectador. Um é o fim, o outro é a trajetória. Ora, se os filmes se limitassem a histórias profundas e com temáticas complexas, não haveria graça nenhuma no cinema de entretenimento. Ao reconhecer a importância da trajetória, também se reconhece que o caminho é tão ou mais interessante que o objetivo final – ou vai me dizer que adorou Mad Max – A Estrada da Fúria pela profundidade de sua história do que pela maneira como ela foi contada?
O fato é que quanto mais o expectador aprender a curtir as sensações que um filme proporciona do que focar precisamente nas explicações, mais ele se envolverá em obras diferentes, ainda mais aquelas que confrontam o senso comum. Claro que tudo depende de o quanto da narrativa o cineasta decide investir seus esforços. Não dá para deixar a trama de lado e se importar só com a metáfora se o filme inteiro dedicou tempo a isso. No caso desse novo Aronofsky, o sucesso da experiência é, decididamente, marcante, mesmo que suas alegorias eventualmente soem pretensiosas e quase literais perto do fim.
Na trama (é esse o máximo de simplicidade possível na descrição), um casal formado por uma mulher (Jennifer Lawrence) e um homem (Javier Bardem) vivem numa casa de campo isolados da população. Enquanto ela trabalha na revitalização do local, parcialmente destruído por um incêndio no passado, ele tenta desenvolver seu próximo trabalho como poeta. A calma rotina dos dois começa a ser abalada quando uma série de pessoas começa a aparecer no local e a situação começa a tomar um rumo desagradável.
Difícil dar uma classificação quanto ao gênero apenas lendo a sinopse. Pelos trailers, foi vendida a ideia de que se tratava de um suspense/terror. Até poderíamos classificar o longa assim, mas certamente em moldes bem diferentes do que isso poderia indicar e muito mais para o lado psicológico e simbólico. A ideia de que estranhos comecem a aparecer de repente numa casa isolada já evidencia algo que pede elementos de gênero, só que nesse caso, a intenção de distorcer a nossa percepção de realidade já fica evidenciada logo no início, quando somos levados a questionar a sanidade dos personagens pelos seus pontos de vista.
Na verdade, um ponto de vista, já que o filme segue integralmente a personagem feminina vivida por Jennifer Lawrence. Compartilhando sua crescente angústia, o público acompanha a mulher pela casa enquanto ela reage desde às situações mundanas com o marido até os intrusos que vão aparecendo e criando situações crescentemente incômodas. Aliás, a construção dada à personagem pela atriz é eficiente em ampliar esse sentimento, já que a extrema passividade e inocência de suas expressões e postura nos despertam empatia, ainda mais frente a um claro abuso emocional por parte do parceiro, mesmo que este transpareça as mais nobres intenções. Somos obrigados o tempo todo a nos simpatizar com uma invasão de privacidade que vai passando de leve incômodo ao absurdo completo. O desconforto se transforma em violência psicológica, nos tornando testemunhas do olhar da protagonista (o que funcionará a favor do simbolismo do filme).
Essa visão que temos da mulher é salientada pelo trabalho de direção de Darren Aronofsky, junto com seu parceiro na fotografia Matthew Libatique (Cisne Negro, Noé), que enquadram a personagem em planos claramente mais fechados do que com outros personagens. Mesmo em sequências normais de diálogo de plano e contraplano, o enfoque é na aproximação no rosto da atriz, o que salienta suas reações dramáticas na narrativa. Soma-se, ainda, o fato da câmera constantemente a perseguir enquanto vaga pelos cômodos da casa, contribuindo para a sensação de tornar o cenário uma extensão da personagem (fora elementos mais diretos que discutirei nos spoilers). É interessante salientar também o trabalho de luz da fotografia, que resiste ao maniqueísmo visual e foge dos extremos na hora trabalhar com o claro e as sombras, fazendo com que as mudanças soem sutis de acordo com o estado emocional da protagonista (note a diferença no ambiente quando ela dá uma boa notícia no meio do 2º ato).
Além do trabalho visual, o design de som merece reconhecimento à parte. Utilizando apenas trilhas diegéticas (aquelas que só fazem parte do universo “real” dos personagens), a narrativa é pontuada pelos detalhes dos sons naturais – e não naturais – da casa, das vozes e daqueles que se originam da percepção de cada personagem, o que torna, ainda mais, a experiência bastante sensorial. Fora que os sons também acompanham a lógica da própria protagonista, que nos dá o que ela consegue captar em cada momento, como conversas distantes em outros cômodos e ruídos que se confundem entre o real e a alucinação.
Pela própria maneira como descrevi os elementos anteriores, é possível perceber que se trata de uma trama calcada numa tensão que vai aumentando na narrativa. Já difícil de discutir sobre o enredo sem que seja preciso adentrar em detalhes, o principal objetivo do filme é trabalhar nessa tensão e na angústia que a protagonista é levada a enfrentar à medida que as interações entre os intrusos, iniciadas pelo personagem de Ed Harris, vão acontecendo. Mas se o diretor escolhe essa carapuça de gênero, é mesmo nas metáforas que ele escolhe trabalhar. E aqui não há escapatória: o filme só funciona se você estiver disposto a embarcar em uma grande alegoria envolvendo maternidade, abuso emocional e a principal: simbologias advindas de mitos religiosos.
É o que mencionei anteriormente: Mãe! é um filme que escolhe prezar pela experiência e pela confiança de que o expectador estará disposto a compartilhar de suas ideias, e nem sempre estarão, é verdade (por enquanto, a rejeição do público em geral tem demostrado isso), mas é inegável que o trabalho de Aronofsky é extremamente competente a ponto de jamais deixar que você saia incólume da sessão. É, de fato, uma ótima experiência cinematográfica, mesmo que sua alegoria principal acabe sendo escancarada, eventualmente, e acabe se sabotando ao encerrar a nossa curiosidade sobre as próprias reflexões que construiríamos sozinhos.
Não levei comigo a curiosidade sobre do que se trata o filme ao final, mas levei as sensações, e essas valeram a pena.
(logo depois do trailer e especificações técnicas, abordo os temas e alegorias do filme abertamente)
Trailer
Nota:
Data de Lançamento: 21 de setembro de 2017 (2h 01min)
Direção: Darren Aronofsky
Elenco: Jennifer Lawrence, Javier Bardem, Ed Harris, Michelle Pfeiffer, Domhnall Gleeson, Brian Gleeson, Kristen Wiig, Jovan Adepo
Sinopse: Um casal tem o relacionamento testado quando pessoas não convidadas surgem em sua residência acabando com a tranquilidade reinante.
A partir desse momento, discutirei o filme tratando dos detalhes e das interpretações da trama
A criação, o mito e o amor, por Darren Aronofsky
Sem incorrer no exagero, desde o primeiro momento do filme, o que mais importa é a ressignificação das imagens. Assim, logo no início, vemos um plano onde um rosto feminino aparece parcialmente entre chamas. Em seguida, o personagem de Bardem coloca uma espécie de cristal em um apoio e logo acompanhamos uma sequência da casa sendo reconstruída, aparentemente depois de um incêndio.
Essa sequência é o que marca a transição de um ciclo para o outro, mais precisamente, o ciclo da criação, que usa a trama do filme envolvendo o casal como metáfora para representar um dos mitos bíblicos de Gênesis. O arco que acompanhamos, na verdade, é o do Criador (Bardem) e sua relação com o mundo (a casa), este também personificado por uma pessoa em cena, a mulher (Lawrence). Mesmo que ainda não saibamos disso, já descobrimos que a casa pulsa (ela literalmente é representada como tendo um coração) e muda de acordo com o estado emocional da mulher (só observar os efeitos que denotam o “apodrecimento” das paredes e móveis, e mais claramente, o buraco no chão que fecha e depois reaparece).
Até o início do conturbado 3 º ato, o que vemos é a mulher, representando a inocência, sendo obrigada a ceder aos crescentes caprichos do Criador. Este, determinado a fazer uma nova criação (os poemas), se vê admirado com a aparição de um homem (provavelmente, representando Adão) e cada vez mais determinado a entender a mente dos convidados. E se a personagem de Michelle Pfeiffer (Eva) aparece como o elemento que confronta a inocência da mulher, seus filhos, interpretados por Domhnall Gleeson e Brian Gleeson, surgem como pessoas já “contaminadas” pela humanidade, com direito, inclusive, a um assassinato (Caim matando Abel). É o simbolismo da corrupção familiar que acontece diante das quebras de regras sagradas (entrar no quarto e quebrar a pedra preciosa).
À medido que os fatos se desenrolam, planos que mostram o coração da casa se atrofiando cada vez mais se intercalam com o desespero da protagonista, que se vê constantemente encurralada quando a quantidade de intrusos aumenta e começa a poluir o ambiente. Nesse sentido, a casa pode ser facilmente encarada como uma extensão do mundo (ou da natureza, como sugere outra interpretação). Quando a mulher engravida, o Criador passa tratar a futura prole como o próximo profeta. A partir desse momento, Ele obtém êxito em realizar o mais belo de seus poemas, atraindo uma multidão que passa a adorá-lo (a humanidade). Essa multidão passa a “infestar” a casa e a mulher é obrigada a lutar contra a loucura que passa a reinar no ambiente (nesse ponto é interessante notar como a personagem vivida por Kristen Wigg vira uma espécie de fanática que mata em nome do Criador).
Ela (a mulher) é quem luta para manter o homem longe da destruição do ambiente (note como, eventualmente, a pia é derrubada quando as pessoas insistem em se apoiar em cima dela), mesmo quando seus habitantes a tratam com violência (aqui representada pela misoginia de um sujeito que dá em cima dela). O Criador parece cego com a admiração dos homens enquanto a mulher (A Mãe, A Natureza) luta para manter a ordem e a sanidade. Mesmo que o mito religioso não fosse o ponto central, seria possível interpretar a obra como um crescente abuso emocional (e físico) frente à maternidade da protagonista.
No 3º ato, o caos toma conta, representado pela confusão e a violência entre vários grupos de pessoas pela casa (está vendo como está ficando óbvia demais a alegoria?), representando a guerra pela incapacidade de conciliar a diferença entre as adorações pelo criador. Assim que o bebê nasce, ele é “oferecido” aos homens e, em seguida, sendo morto pela ignorância desses (cof cof Jesus), enquanto entoam algo como “sua voz permanecerá! ”. À medida que os homens destroem a casa, e mulher se vê obrigada a tomar uma atitude drástica e acaba causando um enorme incêndio que destrói o ambiente e as pessoas nele (olha a Mãe Natureza se virando contra os homens). Diante de sua morte, a mulher oferece seu coração, simbolizando o amor, para o Criador, que o lapida até se transformar numa pedra preciosa, semelhante à que aparece no início do filme, dando um novo começo ao ciclo.
Como se nota, há uma complexa construção de elementos para que a alegoria se encaixe na visão direta que temos do filme. Infelizmente, enquanto tudo isso ocorre, Aronofsky não resiste e passa a incluir diálogos que soam quase tolos ao explicar tudo para o público (“Eu sou o que sou, o que cria…”) e impedir que a questionássemos naturalmente depois da sessão. O efeito é uma leve frustração, pois tudo é exposto (ok, talvez você prefira que fosse mesmo, não há problema) e o que resta é uma obra que faz muito bem a metáfora, mas não deixa muito para grandes reflexões. Se eu já sei que tudo significa a criação bíblica, porque eu vou levar o filme comigo, afinal?
Mas até que levamos. A experiência cinematográfica é, como dito, forte e repleta de sequências angustiantes (destacando a que envolve o bebê e sua curta existência). E é para isso mesmo que existem filme diferentes não é mesmo? São narrativas que nos incitam emocionalmente e fazem a trajetória, acima da história, valer a pena.
Por isso, dessa vez, não ligue muito para a cotação (uma tentativa quase matemática de avaliar uma obra tão subjetiva) e preze a experiência do filme, que vale mais do que decidir a quantidade de estrelas que você daria.
5 Comments
Lendo seu texto, percebi como em alguns momentos o diretor realmente busca deixar a metáfora bastante óbvia mesmo. Eu meio que não estava preparado para um filme como esse. Fui na vibe do trailer de ver um terror psicológico convencional, mas acabou que a surpresa foi boa. Excelente texto.
Cara, ótimo texto. Um dos melhores que li! Parabéns!
Valeu! Só não respondi antes porque não recebo notificação de comentários :/
Rebato o elogio pro seu blog, que tem críticas excelentes!
Parabéns pelo belo texto, é um filme para refletir, ele faz vc pensar fora da caixa, por isto eu amo cinema.
[…] Já falei algumas vez em críticas e em conversas com colegas que eu passei a aproveitar o cinema muito mais quando entendi que a trajetória e tão ou mais importante que o significado ou o tema de um filme. E se tem um que me fez atravessar um corredeira foi este. Tenho alguns probleminhas com a dependência total da narrativa ao caráter alegórico e a uma necessidade final de dar uma explicada no filme pelo personagem de Javier Barden, mas é inegável que a experiencia cinematográfica foi única e isso acaba valendo mais que tudo (crítica aqui). […]