Crítica | Judy – Muito além do Arco-Íris

A vencedora do Oscar Renée Zellweger (por “Cold Mountain”) está irreconhecível no papel de Judy Garland, a multitalentosa artista considerada uma das principais estrelas da “Era de Ouro” de Hollywood. No emotivo trailer de “Judy”, ao som de “Somewhere Over the Rainbow“, a atriz revive nas telonas o dia a dia de Garland sob os holofotes, seus relacionamentos amorosos e a sofrida separação dos filhos, para sua importante viagem a Londres, em 1968.

Dirigido por Rupert Goold e adaptado da peça teatral “End of the Rainbow” de Peter Quilter, o filme transcorre durante o último ano de Judy antes de sua morte, aos 47 anos, e traz flashes da rígida adolescência da artista. Com problemas financeiros e sofrendo com os recentes divórcios, a artista embarca em uma turnê de shows em Londres, durante o inverno de 1968.

Além de Renée Zellweger, intérprete de Judy Garland, o longa traz Bella Ramsey como sua filha, Lorna Luft, e Rufus Sewell como pai de Lorna. Michael Gambon é Bernard Delfont, o empresário por trás da turnê; Finn Wittrock dá vida a Mickey Deans, o quinto e último marido de Garland.

Em 1966, Jacqueline Susan escrevia um livro que se tornaria best-seller no mundo inteiro: O Vale das Bonecas. O livro contava a vida de três jovens em busca do sucesso em Nova York e que, devido a pressões, parcerias e estilo de vida, começam a ter problemas com pílulas (antidepressivos, barbitúricos, drogas pra acordar e dormir), na gíria as Dolls. Logo vendeu 30 milhões de livros, foi traduzido em 20 idiomas e no ano seguinte virou filme. Dirigido por Mark Robson, a primeira pessoa cotada para fazer o papel de uma cintilante e lendária estrela da Broadway foi Judy Garland. Aliás, em Dolls, Judy infelizmente era expert, naquele momento de sua vida estava no auge do uso delas e em algumas primeiras filmagens onde ela nitidamente estava bêbada e completamente fora do papel, foi cortada do filme e substituída pela também brilhante Susan Hayward. Era mais um momento de decepção na descendente carreira de Judy Garland que pouco lembrava aquela menina que desde os dois anos já cantava e dançava com suas irmãs. Quando tinha seis anos, ela e suas irmãs formavam as Gumm Sisters fazendo todo o circuito de vaudeville dos Estados Unidos. Aos 12, já como The Garland Sisters (de onde Frances Ethel Gumm tirou seu nome artístico – Judy vem de uma canção), as irmãs eram sucesso nacional, fato que fez em 1935 Louis B. Mayer ir atrás de Judy para contratá-la e levá-la à MGM, onde começou a virar estrela de cinema. Desde o papel de Dorothy Gale no clássico O Mágico de Oz de 1939, até fim dos anos 40, todos os filmes estrelados por ela eram sinônimo de sucesso, bilheteria e muito dinheiro. Sucesso precoce que começava a dar seus sinais no corpo e mente cansados de Judy, que a partir de 1947 começou a ter reais problemas de saúde devido aos vícios e ritmo frenético de vida. Vida que foi abreviada cedo. O canto dos cisnes dessa lenda do entretenimento americano, mais precisamente o ano de 1968, após a decepção de não participar de O Vale das Bonecas, é tema da biografia cinematográfica de Judy Garland, dirigida por Rupert Goold em Judy – Muito Além do Arco Íris (Judy, 2020).

O filme mostra o penúltimo ano de vida de Judy Garland, já beirando os 50 anos, alcoolista, viciada em pílulas, tendo dificuldade de lidar com suas finanças e cuidar dos seus filhos. Uma oportunidade depois de tantas portas fechadas lhe surge e ela vai para uma temporada em Londres, cantar no teatro Talk of the Town, onde faz uma temporada de altos e baixos, mas mostra que quando está no seu melhor tanto emociona e é uma diva imbatível.

Judy faz uma bela homenagem a uma das maiores artistas do século 20. O filme acerta em recriar uma fase já derradeira da sua carreira, uma era de tropeços pessoais e artísticos, que mesmo em uma galáxia praticamente distante que era a Londres do fim dos 60, sua relevância artística ainda era reconhecida e amada por muita gente. O filme tem uma bela edição dando contrapontos à jovem Judy Garland em 1938 gravando O Mágico de Oz, sendo explorada e abusada por produtores que exigiam uma disciplina rígida, magreza e responsabilidades demais para uma menina que apenas através de drogas e pílulas aguentava esse tranco, dando ali início a sua vida de vícios. Nessa fase é destaque a atuação de Darci Shaw como uma jovem Judy, encarnando muito bem a tão explorada menina de ouro do cinema.

Contudo, em certos momentos o filme erra ao não mensurar a importância grandiosa que teve Judy Garland para o show business, artista completa e ícone de uma era. Apenas mostra passagens de seu passado como Dorothy e mostra seu lado final e melancólico com um roteiro que às vezes parece ser insuficiente com ritmo lento e lacunas que poderiam ser mais bem aproveitadas. Já na parte visual o filme é esplêndido fazendo uma recriação perfeita de uma época e com destaque para os figurinos de shows e orquestra da temporada de Judy no Talk of the Town belíssimos. E os números musicais são muito bem dirigidos mostrando como era o clima dos grandes espetáculos do show business da época.

Mas se Judy tem alguma coisa que nos dá o prazer de ir ao cinema assistir o filme é a atuação visceral de Renée Zellweger. O filme é totalmente dela. Ela encarna, desde os sorrisos, o tom de voz, os trejeitos, as posturas e os maneirismos de Garland. E além de tudo ela solta sua bela voz interpretando os clássicos da artista, em versões emocionantes e únicas. Renée simplesmente está arrebatadora em um caso que a atuação é maior que o filme. Se o filme peca em vários pontos, eles são preenchidos e compensados pela emocionante e verdadeira homenagem a Judy Garland recriada pela atriz.

A história sofrida de Garland também ajuda a criar climas emocionantes, em especial duas cenas que são marcantes: uma quando Judy Garland tenta servir e comer um bolo como se fosse algo mágico, superando seus traumas de infância e início da vida adulta onde foi podada por mais de uma década proibida de comer qualquer “porcaria” pra não engordar e acabar com sua silhueta de queridinha da América. A cena mostra como um prazer simples da vida tem um sabor especial quando se pode ser desfrutado. E a cena final também é de uma emocionante leveza, uma prova de amor do público àquela que outrora era uma unanimidade e naquele momento brigava consigo mesma para se manter viva e se doar com seu talento. Judy é uma digna e correta homenagem, e como todas as cinebiografias tem seus defeitos e falhas, mas tem a função didática de mostrar para o mundo, ao menos em parte, que a grandiosa Judy Garland era mais que uma Dorothy percorrendo uma estrada de tijolos amarelos e sim uma artista que brilhava e com seu talento desfilou no caminho da eternidade.

Sinopse: A lendária artista Judy Garland, interpretada por Renée Zellweger, chega a Londres no inverno de 1968 para realizar seus últimos shows com ingressos esgotados.

Elenco: Renée Zellweger, Rufus Sewell, Jessie Buckley, Michael Gambon, Finn Wittrock, Bella Ramsey, Andy Nyman, Phil Dunster

Direção: Rupert Goold

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