Crítica: Garra de Ferro

Um dos meus programas prediletos na infância era assistir aqueles programas de luta livre, ou com se dizia nos Estados Unidos, wrestling. Me encantava tanto com as lutas masculinas quanto as femininas que davam no SBT. Na minha inocência, achava que aquilo tudo era um pega pra capar geral, violência e nocautes violentos. Aos poucos fui descobrindo que era tudo encenado, mas mesmo assim continuava torcendo para os lutadores da minha preferência, tendo mais apreço pelos mocinhos ou mocinhas e criando um asco dos que encarnavam os selvagens vilões. Não que no Brasil e, décadas passadas também não tivéssemos nossos gigantes do ringue genuinamente brasileiros, mas eu me prendia mesmo na luta dos estadunidenses, com direito aos guerreiros sendo dublados nas entrevistas e provocações. E na cola desse esporte polêmico que tem como missão entreter, eis que somos apresentados, em um filme, à família Von Herich, um dos mais lendários clãs da luta livre, chamado de Garra de Ferro (Iron Claw, 2023), com direção e roteiro de Sean Durkin, uma imperdível tragédia norte-americana que estreia nos cinemas nesta semana.

Jack “Fritz” Von Erich era um famoso lutador de wrestling, um vilão do ringue, era conhecido por vencer seus inimigos com o golpe  chamado  Garra de Ferro. Já aposentado, no fim dos anos 1970, casado com a típica esposa submissa do Texas, Doris, os dois têm uma prole de quatro homens (eram cinco, um morreu tragicamente quando criança). Em um regime quase de caserna, o dominador Jack exige que seus filhos treinem para seguirem nos ringues como ele, crendo em Kevin para seguir o seu legado, mas como esse tinha um comportamento turbulento e queria casar (estava apaixonado por Pam), levou mais fé em David, filho mais confiável do velho Fritz. O clã se formava com Mike, que tinha tendências para a música e Kerry, que queria ser atleta olímpico, mas teve o sonho cortado com o boicote dos Estados Unidos nos Jogos de Moscou em 1980. Aos poucos, conforme vão passando os anos, a obsessão e cobrança do velho Jack faz com que todos entrem na luta livre e cada vez mais tragédias acabam dilacerando a família, em um drama familiar de difícil mensuração.

Confesso que jamais tinha ouvido falar da saga dos irmãos Von Erich. Contam que o diretor Sean Durkin, para ter seu roteiro aprovado, inclusive omitiu um irmão da trama, já que a dizimação familiar era maior ainda. Mas, a sua maneira, conta uma real tragédia americana, onde uma família que representava todos aqueles ideais clássicos do cidadão sulista, em que homens são fortes e proibidos de emoção, famílias são unidas e defendem sua honra e a masculinidade exacerbada é um dever, ainda mais quando falamos de uma família de lutadores. O filme tem um quê de Os Jackson. Não tem como não comparar o pai de Michael e seus irmãos com o patriarca Jack. Excesso de disciplina, cobrança intensa, falta de sensibilidade e muita competitividade, eram a cara do pai dos lutadores, como era Joe Jackson. Só que a grande diferença é que os irmãos Von Erich foram, um a um, tragicamente perdendo ou tirando suas vidas, muito pela extrema obrigação de serem vencedores. E mesmo com toda essa cobrança, os meninos eram apenas irmãos que se amavam, com afeto e uma união que nem mesmo a distante e dominada mãe e o estúpido pai podiam impedir, só faltava mesmo uma orientação para curarem sem traumas e os laços de humanidade que o patriarca não conseguia ver nos talentosos rapazes.

O filme conta com uma primorosa reconstituição da época, uma fotografia com a cara da era retratada, fim dos 1970 e início dos 1980, e tem uma trilha sonora de alguns clássicos da época, como a muito bem colocada na trama (Don’t Fear) The Reaper, do Blue Oyster Cult, Thank God I’m a Country Boy,do John Denver, Tom Sawyer, do Rush, entre outras, em um belo corte sonoro do tempo em que os Von Erich eram os reis do ringue. E outro grande acerto do filme foi saber utilizar as lutas na medida certa, não sendo um filme puramente de luta livre, tendo os combates apenas como pano de fundo para a dramática trama.

Zac Efron finalmente conseguiu um papel que pode ser um divisor de águas na sua carreira. Mesmo com toda a brutalidade de Mike, ele consegue passar uma sensibilidade pro atormentado personagem, que mesmo descontrolado, teme constantemente a maldição da família. Um papel honesto e maduro que poderia ter rendido uma indicação para algum prêmio ao Zac. O pai, vivido por Holt McCallany, também entrega uma atuação forte, na pele de um homem sem sentimentos e nenhum escrúpulo de exigir vitórias dos filhos, não importando se é isso mesmo que eles querem. Jeremy Allen White, como o obcecado Kerry, e Stanley Simmons, como o sensível Mike, também estão bem como os dois irmãos do clã, forçados a serem campeões sem terem o talento de Mike e David (Harris Dickinson), o primeiro a falecer.

Alguns acham que o filme perde a mão transformando uma história incrível em um dramalhão, às vezes piegas, principalmente na quase conclusão da história, mas me pergunto, como não ser um dramalhão, uma família perder três irmãos  jovens e saudáveis (ao menos no corpo, mas com a mente em frangalhos) como dominós sendo derrubados impiedosamente? Acho que o diretor até amaciou as tintas em alguns momentos, porque não imagino uma mãe aguentar tanta tristeza assim, no caso uma fé quase doentia na Bíblia ameniza as coisas para Doris (Maura Tierney).

Garra de Ferro é  uma cinebiografia excelente, um soco no estômago, não apenas pelas perdas dos Von Erich, mas muito por algumas atitudes. Entre uma delas, Jack “Fritz” Von Erich, após perder o filho, exige que os irmãos não chorem e nem mesmo o enterro se encerrou, já avisa aos filhos, ainda catatônicos, quem seria o substituto e o futuro campeão, em uma atitude que mostrava a total falta de carinho e realidade do pai. Ou já no futuro, com Mike, vendo seus filhos brincando, pensa na vida e chora, os moleques chegam perto e indagam: por que choras pai? Ele retruca: não sei, não costumo fazer isso. E eles respondem: por que pai? Nós choramos o tempo todo… Enfim, como diria o Gonzaguinha, eu fico com a pureza e a resposta da crianças, e Garra de Ferro é um tipo caso do que pode ocorrer quando se tira a pureza delas em troca de aparências, dinheiro e exigência de serem eternos vencedores e como pouco amor como retribuição pode transformar qualquer família de margarina em um desastre.

 

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