Crítica: Gabriel e a Montanha é mais um ótimo nacional de 2017

Em 2007, eu via, pela primeira vez de muitas, a incrível jornada humana e aventuresca de Christopher McCandless pelas belas paisagens dos EUA; e não só isso, um belo, inspirador e trágico estudo sobre a busca do que é necessário para nos tornar plenamente realizados frente a uma constante batalha entre nossas idealizações e a sisudez do mundo, que nos obriga a trilhar um caminho pré-estabelecido cujo o único propósito aparente é assegurar que jamais questionemos nosso papel como seres humanos. O filme era Na Natureza Selvagem, dirigido por Sean Penn, e tinha como enorme mérito traçar a jornada de um personagem que vivia angustiado por acreditar que a felicidade jamais se encontraria na rotina de sua vida familiar, embora fosse, também, novo demais e incapaz de entender toda a complexidade das difíceis decisões que decidiu tomar (só para constar, outro mérito igualmente reconhecível é a belíssima trilha sonora composta por Eddie Vedder).

Pois esse ano, o diretor Fellipe Barbosa decidiu contar a história real de seu amigo Gabriel Buchmann, um pesquisador que realizou um mochilão em 2009, com o filme abarcando 70 dias de sua trajetória. Gabriel era formado em Economia e fazia uma extensa viagem pela África como parte de pesquisas sobre políticas públicas em países pobres. Destinado a durar 1 ano, o percurso tinha como principal característica conviver com diferentes povos e culturas através de uma autossuficiência que o permitia gastar de 1 a 5 dólares por dia, sem direito a nenhuma “regalia” destinada a turistas, como hotéis, transporte próprio ou qualquer outra coisa que o igualasse a um visitante curioso qualquer. Sua intenção era viver a realidade assim como era para cada grupo que encontrava pelo caminho. Dormia em lugares improvisados, passava fome (ou até caçava como parte de um ritual de aceitação) e passava a maior parte do tempo traçando objetivos de auto superação, representados, primordialmente, pela fixação em alcançar os picos de montanhas famosas da região.

Gabriel e a Montanha, portanto, surge como uma espécie de espelho da obra realizado por Sean Penn em 2007 e, embora não tenha a mesma virtuose visual e a capacidade de tempo e orçamento, é igualmente sensível e tocante como jornada, o que só aumenta a estima pelo trabalho e cuidado de Barbosa como diretor – e claro, também o óbvio respeito pela figura humana do amigo. Acompanhar Gabriel em sua viagem acaba se transformando num comovente estudo sobre como observamos a nós mesmos como humanidade e como nos despimos de barreiras impostas por nossa rotina quando de encontro a realidades tão diferentes. Pois, acima de qualquer coisa, o longa é um retrato quase documental sobre o ser humano e sua cultura, sem que jamais precise apelar para estereótipos ou alguma necessidade de estabelecer um ponto pré-determinado maior. Não é um filme sobre pobreza ou sobre a África, é sobre as pessoas, tanto as que povoam o universo representado no caminho, quanto à própria pessoa do protagonista.

E Gabriel é “somente” isso: uma pessoa. Não há nenhum ímpeto de transformá-lo numa espécie de mártir ou visionário, o que só aumenta sua riqueza como personagem, o aproximando, portanto, da pessoa de verdade. Assim, o rapaz é daqueles que sim, é diferente da maioria por viver sob a empatia como alicerce, mostrando, constantemente, sua admiração e respeito por cada pessoa que cruza seu caminho. Nesse sentido, cabe ressaltar o ótimo trabalho de João Pedro Zappa, que traduz em suas expressões uma curiosa mistura de reverência e uma autoconfiança que nem sempre se revela tão segura. Gabriel mostra profundo respeito pelas culturas diferentes e parece genuinamente emocionado sempre que se depara com demonstrações iguais de carinho vindo de pessoas cujas imagens são estereotipadas por todos aqueles que julgam conhecer uma outra civilização através de reportagens de jornal.

Se o longa consegue fugir de caracterizações unidimensionais é porque Fellipe Barbosa e sua equipe decidiram por uma abordagem que preza a ficção com o semi-documental. Realizando um verdadeiro trabalho de pesquisa, o diretor viajou para as locações reais por onde Buchmann realmente passou, tentando retratar o máximo do aspecto visual das paisagens e das culturas. Além disso, a estrutura adotada pelo cineasta faz com que Gabriel nos seja apresentado, além do próprio personagem, através de depoimentos feitos pelas pessoas reais com quem o rapaz conviveu durante os 70 dias retratados. O resultado é que sua imagem, além da que formamos por nós mesmos, é carregada das impressões daquelas figuras que obtiveram um olhar próximo dele, cada um com a lembrança particular de cada momento de sua trajetória.

Mas como dito, Gabriel é, também, uma pessoa que não tem a mesma experiência de vida que acreditava ter (apenas 28 anos), mesmo que julgasse assim (o que é natural para todo mundo). Portanto, é mérito do filme que enxerguemos um personagem que ainda carrega todas as dúvidas e incertezas da idade – e os defeitos também, vale ressaltar. Se num instante, ele demonstra um amor incondicional pela namorada Cris (interpretada com sensibilidade por Caroline Abras), no outro passa a apresentar um comportamento egoísta, pedante e machista, mesmo que acredite estar apenas “questionando” a parceira. Isso não faz com que Gabriel subitamente se transforme num sujeito odiável, mas serve para entender que não há razão para santifica-lo, mesmo que sua trajetória seja, inquestionavelmente, digna.

Aí é que a riqueza do filme fica ainda mais forte: quando nos questionamos acerca da personalidade do protagonista, mesmo que não o façamos com o que realizou em vida. Será que Gabriel agia como agia por ser alguém mais altruísta do que o comum? Ou será que parte de suas decisões também refletiam uma necessidade subconsciente de formar uma imagem mais segura para si mesmo e para os outros? Acredito que a segunda definitivamente leva mais qualidade à obra. Claro, não que o questionamento faça com que tudo que vemos na tela seja produto de um fingimento ou dissimulação. Pelo contrário, a maioria de nós jamais teria coragem de realizar o mesmo. Mas também não há como negar que a complexidade de Gabriel na narrativa enriquece nossa curiosidade em divagar sobre até onde vai o nosso ímpeto em atravessar obstáculos no intuito de alcançar uma ideia de felicidade e realização; ideias essas que parecem se contradizer sempre em suas idealizações.

Porque afinal de contas, Gabriel, assim como McCandless (embora com motivações de origens bem diferentes), passou a vida perseguindo uma felicidade que julgava não estar presente no comum. Nascer, crescer, trabalhar e morrer é um caminho simplório demais para encaixar essa “felicidade”. É preciso algo mais. No mínimo, uma jornada tão intensa como a dos dois.

Mas aí é que chegamos numa encruzilhada, pois ambos terminaram em busca de uma realização pessoal que acabou quase tão utópica como aquela que julgavam básica demais. E o que acredito que Na Natureza Selvagem e Gabriel e a Montanha tenham a dizer é que o que vale mesmo, assim como nos filmes, é a trajetória, não o fim.

Nota: 

Trailer

https://www.youtube.com/watch?v=w9cw1Ntrhqg

Data de lançamento: 02 de novembro de 2017 (2h 11min)

Direção: Fellipe Barbosa

Elenco: João Pedro Zappa, Caroline Abras, Leonard Siampala, John Goodluck, Alex Alembe

Sinopse: Antes de entrar para uma prestigiada universidade americana, Gabriel Buchmann decide tirar um ano para circundar o mundo. Depois de dez meses de viagem e imersão no coração de muitos países, ele decide visitar o Quênia, para descobrir o continente africano, até escalar o Monte Mulanje, no Malawi, seu destino final.

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