Crítica: Fale Comigo

Seguidamente surge algum produto cultural com aquelas alcunhas publicitárias do tipo: o melhor filme do ano, a melhor música de 2023, ou o melhor disco que você vai ouvir em tal ano. Com raras exceções, normalmente, o exagero é a marca dessas tais expressões. Recentemente um filme de terror australiano dirigido por dois irmãos novatos, Danny e Michael Philippou, advindos de canais de terror do youtube, causou esse furor, sendo considerado o melhor filme de terror do ano. Fale Comigo (Talk To Me, 2022), o tal melhor filme, é uma das estreias da semana nos cinemas. 

O filme segue aquele padrão básico. Jovens metido a corajosos, querendo novas experiências, conseguem através de uma mão embalsamada uma conexão com o mundo dos espíritos. Os tais rituais mobilizam um grupo de jovens, na casa dos irmãos Jade e Riley, que juntamente com Mia (melhor amiga de Jade, que perdeu a mãe dois anos atrás). O que começou como uma grande algazarra juvenil, regada a risadas, desafios, todos querendo participar da tal invocação, que consistia em amarrar o escolhido numa poltrona pela cintura, ligar uma vela, a pessoa tocar na tal mão e dizer: fale comigo. Tudo corria bem até que Riley, o irmão mais jovem de Jade, resolve participar. Só que aparentemente ele é possuído pelo espírito da falecida mãe de Mia, e ela, desesperada, resolve indagar o menino, passando o tal tempo limite da possessão. Com isso Riley começa uma sessão de autoflagelo, se batendo, debatendo e se ferindo aos olhos incrédulos dos participantes que preferiram gravar com seus celulares a  cena do que ajudar o menino. Depois dessa possessão violenta, Mia começa a ficar cada vez mais perturbada, recebe os espectros da mãe e acha que tem a solução para libertar a atormentada alma do menino Riley, que sobrevive capenga numa cama de hospital.

Brilhante filme de terror moderno da dupla de irmãos australianos Philippou. Além de dirigirem, assinam o cativante roteiro. Quando parece que todas as fórmulas de terror já foram testadas, é ótimo ver gente nova dando vida a novidades no gênero, ou melhor, reciclando para melhor o gênero. Fale Comigo é um terror moderno, jovem e antenado em questões atuais como persuasão, egoísmo juvenil, cultura de redes, com celulares sempre em punho, e a irresponsabilidade juvenil em desafiar a morte, ou não crer nela. Tudo isso utilizando aquela velha história de rituais de conexão, que antes eram com copos, ou tabuleiro Ouijas, usando dessa vez como elo uma mão embalsamada, supostamente de um vidente.

Outro ponto positivo é que o filme não apela para sustos fáceis. Existem, é claro, terror explícito, sangueira e algumas cenas perturbadoras, com uma boa caracterização dos espíritos, tudo sem exageros ou que causem desconforto. Mas mesmo com um terror mais calcado no suspense ou na evolução da história, o filme também não perde tempo com silêncios perturbadores ou chatices visuais. Em suma, um filme com cara de anos 1980, 1990, mas com questões específicas dos anos 2020.

Do elenco principal destaque para Sophie Wilde, como a dúbia Mia. Jovem ainda inconformada com o suicídio da mãe, e que faz qualquer coisa para ter uma chance de tê- la de volta, mesmo que as consequências possam ser malditas. A atriz desenvolve bem a personagem, seus fantasmas e perturbações e o poder de controle sobre os outros. Alexandra Jensen, a melhor amiga, como a boazinha Jade, é o contraponto da corajosa  sem freio Mia, e Joe Bird sofre horrores na pele do possuído Riley. E como sofre.

Umas das grandes cenas do filme é do auto-martírio do menino. Tanto na sessão de invocação dos espíritos, onde  literalmente destrói seu rosto, quanto na chocante cena do banheiro do hospital, onde bate a cabeça diversas vezes com violência na parede chegando a quebrar o azulejo, em que não tem como não lembrar de Evil Dead, de Sam Raimi. A cena inicial também choca não pela crueza de ver um jovem possuído que esfaqueia o irmão e depois se mata, mas sim pela capacidade do ser humano de ficar passivo e preferir registrar nos celulares o momento do que ajudar as vítimas. Inclusive um dos diretores disse que se inspirou numa cena de overdose de um amigo, que muitos preferiram fazer vídeos idiotas que socorrer o tal amigo se debatendo em convulsão. Um filme que mesmo usando alguns clichês básicos da influência estadunidense, tem luz própria, criatividade, ritmo intenso, criando uma crescente de tensão, que com os seus suficientes 90 minutos, nos apresentam uma história clara, direta, sem rodeios e atual.

Fale Comigo talvez não seja o melhor filme do ano (o ano ainda está em agosto), mas com certeza já pode ser considerado um dos melhores dos últimos anos. Uma esperança de renovação do gênero que não precisou apelar pra chatices existenciais e oníricas como algumas pretensiosas produções metidas à besta dos últimos anos, e também não precisa encher a tela de jump scares, tosquices e sustos fáceis que não assustam ninguém. Um filme com pegada do passado, mas com a realidade dos tempos atuais, jovens narcisistas, invejosos e egoístas, redes sociais, necessidade de exposição e falta de medo e noção com o desconhecido (desafios de internet). Flerta superficialmente com o espiritismo, suicidas e almas sofridas e tem um final admirável. Esqueça o rótulo de Fale Comigo ser o melhor filme de terror da última semana e, se gosta da coisa, assista nos cinemas, que com certeza é terror de primeira qualidade.

 

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