Crítica: Eternos

No final dos anos 1960, um curioso livro de um escritor suíço mexeu com o imaginário popular e provocou uma verdadeira febre, transformando a obra em um best seller. O livro chamado Eram os Deuses os Astronautas, de Erich von Daniken, baseado em diversas teorias e observações, concluía que nossas grandes civilizações do passado tiverem um dedo de alienígenas, que com seu poder, evolução e tecnologia foram guias para esses povos construírem estátuas, pirâmides, construções nababescas e mesmo com toda a escassez de recursos tecnológicos já pensavam anos-luz à frente do ser humano. Essa teoria dos astronautas guias, tanto espirituais quanto bússolas para a modernidade, encantou vários leitores com as tais conclusões, mas também recebeu várias críticas considerando estapafúrdias as ideias confusas que misturavam misticismo, ufologia, divindades e revisionismo histórico. Quem o usou como fonte de inspiração para criar personagens para o universo da Marvel, foi Jack Kirby, que fascinado pela possível interferência alienígena nas civilizações do passado, criou nos anos 1970, uma HQ meio lado B da Marvel, chamado Eternos, que mostrava como super-heróis de outro mundo defendiam a terra de ameaças através dos tempos e ajudavam a acelerar o processo de evolução humana, mas sem interferir diretamente. Essa curiosa adaptação estreia nos cinemas essa semana, tentando inserir os alienígenas superpoderosos no universo expandido da Marvel, falo do filme Eternos (Eternals, 2021), dirigido pela premiada Chloé Zhao.

No princípio eram os Celestiais. Estes criaram os Eternos, seres cósmicos e imortais, que povoam a Terra desde o início dos tempos e tem como missão defender os humanos dos Deviantes, seres perigosos e mortais. Passados milênios pela Terra, chegando ao século 21, hoje eles vivem separados e espalhados pelo planeta tentando viver uma vida cotidiana e pacata. Até que o surgimento de uma ameaça Deviantes e uma promessa de destruição da raça humana, por parte dos Celestiais, fazem o grupo se unir novamente e enfrentar com seus poderes seus criadores para salvar a Terra do iminente fim.

Realmente sempre fiquei curioso de como a Marvel poderia inserir os curiosos personagens Eternos, de Jack Kirby no seu rico e interligado universo. Coube a Chloé Zhao, que além de dirigir assina o roteiro, com mais seis mãos. Uma das premissas que a diretora recebeu foi de ter a liberdade estética de assinar a obra com seu estilo.

Aliás, tarefa bem ingrata ela teve, transpor essa esquecida história cheia de personagens desconhecidos do grande público para a telona e agradar aos exigentes fãs da Marvel. Se ela consegue? No meu ver, em parte sim. Com uma fotografia deslumbrante, cenas de ação de tirar o fôlego, tomadas sensacionais para as cenas épicas, uma viagem no tempo e na história, Chloé apresenta um dos filmes mais belos visualmente do universo estendido da produtora. Mas o grande problema fica mesmo é na falta de profundidade e desenvolvimento dos personagens. Se uma coisa que a Marvel sabe fazer bem e consegue cativar seus fãs é ter personagens carismáticos e fortes. Bom, Eternos é um universo distinto de dez personagens praticamente desconhecidos dos fãs do gênero e totalmente do espectador casual. Aí que o filme tem a perder. Talvez para dar aura e carisma a tanta gente precisasse de uma série ou algo do tipo, mas mesmo com mais de 150 minutos, vemos um monte de divindades recheadas de crises existenciais rasas, mau humor, lideranças frágeis e uma falta de sincronia, que mesmo com milhares de anos atuando juntos, parece que alguns não conhecem praticamente nada dos seus colegas de “profissão”.

A própria inserção dos personagens no contexto do universo expandido também se limita a algumas piadas (sem graça) e citações aos Vingadores e à destruição de Thanos. O grande elenco também não está na sua melhor química, Gemma Chan, como Sersi, possível líder do grupo, trabalha bem, mas não chega a convencer como a protagonista principal. Richard Maddis, como Ikaris, também se limita a fazer suas caras blasé e sem graça e, mesmo com sua força e poderes fenomenais, não tem potencial de virar a cabeça do espectador. Diria que Kumail Nanjiani, como KIngo, que nos tempos atuas é um astro de Bollywood, é que transmite mais humor e força na medida Marvel, conseguindo ser o mais carismático dos heróis e Sprite ou Duende, interpretado por Lia Mc Hugh, condenada a ter uma aparência de uma pré-adolescente com poderes mágicos, também agrada pelo mau humor e desconforto com sua total impotência de crescer. Salma Hayek, como Ajak, brilha pouco e Angelina Jolie, como a guerreira Thena, parece um peixe fora d’água na trama, com um papel digamos estranho e uma atuação bem fraquinha e nonsense da atriz. Lauren Riddlof, como a veloz Makkari, é a primeira personagem deficiente auditiva da Marvel, assim como Brian Tyrre Henry, “eterno” gênio de armas de tecnologia é o primeiro personagem gay do universo. Fato que provocou aquela enxurrada básica de haters imbecis e preconceituosos nas cotações negativas do filme…

Outro fato que deixa a desejar é que mesmo grandiosas as cenas, em algumas delas, os efeitos de CGI parecem que ficaram devendo, fora do padrão de qualidade de heróis pós 2008, nada muito gritante, mas que devido ao excesso de personagens, batalhas e superpoderes, um pouco mais de capricho e tecnologia podiam suprir facilmente essa falha. O filme também vai crescendo aos poucos, seu ritmo lento na primeira parte cansa um pouco, ele tenta engrenar na segunda, mas emplaca mesmo é na terceira fase, dando luz ao nome de filme de heróis. Mas falando de méritos, além de realmente ser o filme mais artístico visualmente da Marvel, e com aquele clima de liberdade independente com milhões no bolso, o roteiro apesar de parecer confuso, é de fácil compreensão, e mesmo uma história tão aleatória e do fundo do baú como a de Eternos faz até o menos adepto a quadrinhos entender perfeitamente a trama.

Eternos, apesar de grandioso, tecnicamente quase perfeito e beirando ao épico, falha no que melhor a Marvel nos deu nessas inúmeras fases de filmes: a construção de inesquecíveis personagens. A fauna imensa de alienígenas poderosos confunde um pouco o espectador e a falta de carisma dos atores aos personagens e o desconhecimento da grande maioria da audiência podem fazer o filme não vingar o esperado, ainda mais para fãs tão xiitas quantos os de adaptações de quadrinhos. Essa mistura de mitologia, Erich Von Daniken, super poderes, Fúria de Titãs e destruição a lá Thanos poderiam ser melhores chacoalhadas e terem como resultado uma história mais dinâmica, bem-humorada e direta, o que poderia ter como resultado elevar os quase desconhecidos Eternos (com perdão do trocadilho) para a eternidade. Mas, mesmo assim, o filme é longe de ser ruim, e mesmo um pouco pretensioso, fugindo das características do gênero (o que pode ser até considerado mérito para alguns), merece ser conferido, até porque, quem sabe, a cereja do bolo ainda está guardada para a eventual e natural continuação.

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