Crítica- Ela Disse

Chega a ser incrível pensar que diversos filmes, já clássicos das últimas décadas, como Cães de Aluguel, Um Drink no Inferno, Pulp Fiction, O Carteiro e o Poeta, Shakespeare Apaixonado, Pânico, Paciente Inglês, Gangues de Nova York, Chicago, O Artista, Bastardos Inglórios… a lista segue quase sem fim, tenha quase todos os dedos, ou como produtor ou como produtor executivo, de Harvey Weinstein, o todo poderoso da Miramax, e culpado bem tardiamente por assédio, estupro e importunação por crimes cometidos desde os anos 1990, graças ao trabalho investigativo de duas jornalistas do New York Times. Essa história incrível dessas duas mulheres que trabalharam dia e noite para dar voz as suas vítimas virou filme, que estreia essa semana, falo de Ela Disse (She Said, 2022), de Maria Schrader.

O filme conta passo a passo como Megan Towhey e Jodi Kantor, duas brilhantes jornalistas, mães, esposas e obstinadas pela verdade, começaram a juntar depoimentos e construir o mosaico investigativo, que provava que Harvey Weinstein, um dos mais poderosos nomes dos bastidores do cinema, obrigava, desde secretárias, gente da produção, até grandes artistas, a se submeter aos seus devaneios abusivos e como ele, com sua influência, conseguia com dinheiro abafar os casos e afundar as carreiras das suas vítimas. Towhey e Kantor incansavelmente colhem provas para fazer a matéria que literalmente mudou o mundo em 2017, abrindo alas para o movimento MeToo, onde milhares de mulheres de todo o mundo e em qualquer área se sentiram encorajadas para denunciar.

 

Ela Disse é um filme extremamente necessário, com roteiro de Rebecca Lenkiewicz, baseado no livro das duas jornalistas, que narram como chegaram à matéria bombástica no livro Ela Disse. Ele tem todos os elementos clássicos, de filmes de jornalismo investigativo e passa didaticamente o passo a passo da investigação, em uma narrativa usual, e às vezes até cansativa, tamanho os envolvidos na trama. Maria Schrader também opta por uma direção segura, linear, muito parecida com o clássico Todos os Homens do Presidente,  de 1976, mas obviamente, em uma época mais tecnológica, com telefones celulares que não param de tocar, caixa de e-mails, investigação de campo, busca por pistas em várias cidades ou até fora mesmo dos Estados Unidos. Mas confesso que por mais que ela tente acentuar o tom e mexer com uma história recente que impactou tanto, faltou um tanto de emoção na condução da história, que mais romanceada e menos retinha, com mais suspense, talvez teríamos como cinema um resultado melhor. Abusa também de câmeras que acompanham as duas jornalistas, closes distantes, em uma fotografia interessante de Natasha Braier. O artificio do drama das jornalistas que tem que ter jornada dupla como profissionais prontas para mudar o mundo e ao mesmo tempo mães que se desdobram pelas filhas, pode gerar o caldo emocional na trama, além dos depoimentos das mulheres que fazem a gente ter mais ódio do abominável Weinstein.

Como o filme é quase uma narrativa jornalística, sobra pouco espaço para atuações mais brilhantes e tanto Carey Mulligan como Megan Twohney, quanto Zoe Kazan, como Jodi Kantor, premiadas artistas, tem atuações discretas, mais em decorrência da história que brilha mais que a necessidade de dramaticidade da dupla. Ficando o destaque para as coadjuvantes, como Jennifer Ehle, como Laura Madden, umas das primeiras vítimas do tarado produtor.

 

Ela Disse é um filme corajoso e, para quem não conhece, perturbador. Se na parte cinematográfica não tem grandes novidades, optando por um roteiro retilíneo, sem invenções ou derrapadas ousadas, além de ser um pouco cansativo para quem não tem muita atração por reportagens jornalísticas, pois ele segue a incrível jornada de Megan e Jodi por mais de duas horas, isso pouco importa para a importância de mostrar para o mundo através das telonas como com seriedade, denúncia, trabalho, o jornalismo, tão atacado hoje em dia, tem um papel fundamental na nossa sociedade. E se temos hoje um cara como Weinstein na cadeia, que viu sua vida pessoal, financeira e produtiva ir abaixo por seus incontroláveis e inaceitáveis abusos, foi graças à obstinação dessas duas jornalistas e às dezenas de mulheres que resolveram abrir a boca e enfrentar na cara e coragem o quase intocável sócio da Miramax. Além de ter aberto a caixa de pandora para que qualquer desrespeito, em qualquer ambiente de trabalho, as pessoas percam o medo e denunciem, mesmo que como numa das cenas do filme, um advogado do acusado fala: “Sabe como é, ele é de outra geração, teve outra criação, podemos ponderar”. Respeito não tem idade e geração, obviamente que o processo é lento, mas ele está em constante andamento. E quanto aos filmes que citei no início do texto, mesmo contando com os dedos imundos do Weinstein com sua grana, continuam obras-primas, e merecem ser vistos, porque abominar a arte não imacula o passado. Enfim, Ela Disse, filme obrigatório, assistam!

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