Crítica: Deslembro (2018) | Memórias ruins tornam pessoas mais espertas. Será?

E aí, meu povo, como vão vocês? É isso mesmo, cá estou novamente, após pouco mais de um ano ausente na área, mas sempre que possível, ainda dou um jeito de escrever um textinho aqui e ali, beleza? Seguinte: hoje tô aqui pra lhes escrever sobre um filme que com certeza merece a sua atenção por um segundo, pois trata de temas relevantes e reflexivos ao nosso dia-a-dia: família, superação, resiliência, e o quanto as lembranças são capazes de impactar o funcionamento do nosso psicológico. Trata-se de Deslembro, novo filme da diretora Flávia Castro (Diário de uma Busca [2010]), o qual traz consigo rostos um tanto conhecidos por nós, como Eliane Giardini, Jeanne Boudier e Jesuíta Barbosa. Então vem comigo, e tire um tempo pra refletir e analisar esta premiada obra que, além de ter circulado país afora (foi o vencedor do 21º Festival de Cinema Brasileiro de Paris), certamente agregará algum valor em sua vida.

Joana é uma adolescente que mora em Paris com a família. Quando a anistia é decretada no Brasil, ela volta ao Rio de Janeiro, cidade onde nasceu e onde seu pai desapareceu nos porões do DOPS, pois foi um prisioneiro político durante a ditadura militar. Lá, a menina revive memórias difíceis, e o seu passado ressurge aos poucos, não demorando muito até que a vida de todos mude radicalmente.

Desde o primeiro minuto de filme, acompanhamos a rotina de Joana (interpretada pela noviça Joanne Boudier) e seus irmãos, cujo comportamento demonstra afeto fraternal na maior parte do tempo, mesmo diante de tantas circunstâncias desfavoráveis da porta de casa pra dentro. Sua relação familiar baseia-se tanto na falta de comunicação sobre assuntos delicados demais, quanto no peso decorrente de culpa em relação ao assombroso desaparecimento envolvendo seu pai Thiago (cujo nome verdadeiro do personagem é o mesmo do autor que vos escreve), pois em plena ditadura militar (e aprovação da infame Lei da Anistia, em 1979), havia um forte receio e hostilidade instalados por aqui, no que condiz com liberdade de expressão e de organização, então logo nas primeiras cenas (e no trailer, por sinal), Joana se recusa a ir ao Brasil, porque questiona se este não é um país onde eles torturam e matam todo mundo. Tenso, não é? Contudo, claro que não coube a ela decidir se vai junto ou não. Logo, acaba indo contra a sua vontade, ainda que em meio a todas as mudanças culturais exibidas em cena.

Outro aspecto que achei bem interessante foi justamente o revezamento de línguas que o longa optou por utilizar. Isso mesmo, os idiomas ouvidos transitam entre Francês, Espanhol e o nosso bom e velho Português, sem contar as breves referências à eventos ocorridos nos anos 80, suas várias referências musicais, a fotografia que insinua pitadas de psicodelia, flashbacks (os quais felizmente não confundem o espectador, já que são colocados da maneira mais concisa e conveniente à compreensão dos mesmos), um certo clima de tensão contido no roteiro, e, obviamente, uma visão de mundo que não perde por citar algumas ironias políticas (sem ofensas àqueles que forem de Esquerda ou Direita).

Com relação às atuações, é visível uma segurança, tranquilidade e carisma demonstrada por todo o elenco, mas eu em particular apreciei os momentos onde a novata Joanne Boudier proseava com sua avó, Lúcia (na pele da competente Eliane Giardini) e sua mãe (Sara Antunes), bem como a cena dos irmãos tomando banho de chuva ao som de “Três Apitos, de Noel Rosa”. Aquele momento foi o mais próximo que eles atingiram de felicidade durante um período marcado por tantos infortúnios, falta de explicações e o desconhecimento de seu próprio passado, o que, consequentemente, gera à sociedade sequelas preocupantes ao modo de viver, sendo pessoas leigas a respeito de si mesmas, e prestes a seguir, novamente, caminhos antigos e duvidosos. Inclusive, vale ressaltar que o personagem de Jesuíta Barbosa quase nem aparece, mas por devidas razões, pois a ausência paterna é um dos pontos fortes da película, assim como o silêncio que predomina boa parte de seus noventa e 96 minutos de projeção. Destaque na novela das 7, Verão 90 (cuja qual também tenho acompanhado, ou pelo menos, tentado acompanhar), o astro conta com um papel de suma importância e compreensão do público. Sua performance, embora breve, é inverossímil, impressionante…rs

Mediante tantas incertezas sobre o futuro (isso inclui efeitos causados até mesmo no cotidiano mais banal de Joana, como a impossibilidade de uma mera excursão da escola em razão da inexistência da certidão de óbito de seu pai), a intérprete de Joanne consegue desfrutar das descobertas de sua adolescência, (quem não se recorda de estar ou já ter estado flor da juventude, hein?), onde novas experiências (sexo, drogas e rock ‘n roll, literalmente) viriam a servir de alívio em um cenário ameaçado por influência externas para a sobrevivência dela e de sua família. Seja por conflitos sociais, a interação entre tempo presente e passado, as fortes discussões familiares, o sentimento de culpa que caíra sobre Joana, ou toda a repressão e incapacidade do Estado na hora de dar respostas sobre o paradeiro de desaparecidos políticos, estes são eventos deveras curiosos, que transformam o filme em um retrato fiel daquela época, apesar das cenas mais paradas. Sabe quando uma obra está recheada de diálogos, mas mesmo assim não se torna maçante? É o caso de Deslembro, meus amigos. Logo, não é à toa que a cena final por si só traça um paralelo com instantes anteriormente mostrados na fita (vide os hábitos seguidos por gerações), onde somos envolvidos por uma trilha sonora agradável a todos os ouvidos, o que fazem do filme uma boa pedida aos apreciadores do cinema brasileiro (como eu). Em minha opinião, muito bom!

 

Título Original: Unremember
Direção: Flávia Castro
Duração: 96 minutos
Nota:

Veja o trailer:

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