No meio musical existe sempre a necessidade de se criarem reis, ícones e referências. E a admiração fica ainda maior depois da morte desses ídolos. Elvis Presley é o inigualável rei do rock, Michael Jackson, tem a coroa do pop, Frank Sinatra era o The Voice, Kurt Cobain, maior nome do “grunge”, foi um que virou saudades cedo, mas até hoje provoca grande admiração dos fãs, mesmo quase 30 anos depois da sua morte. E, é claro, nesse mesmo panteão, podemos colocar Robert Nesta Marley, ou simplesmente Bob Marley, que é o maior artista de reggae de todos os tempos. Se Elvis já ganhou algumas versões cinematográficas, Michael terá uma aguardada em breve e Sinatra e Cobain já tem alguns documentários, Bob ganhou um filme, que estreia essa semana nos cinemas brasileiros, falo de Bob Marley – One Love (Idem, 2024), aguardada cinebiografia do rei do reggae, com direção de Reinaldo Marcus Green.
O filme pincela um momento da carreira do cantor jamaicano. No anos 1970, a Jamaica era um barril de pólvora entre posição e oposição, atentados, assassinatos e violência davam as cartas. Bob Marley, já um consagrado astro mundial, resolve fazer um show pela paz, mas dias antes sofre um atentado, que feriu seu empresário e Rita Marley, sua esposa. Mesmo baleado realiza o show, mas logo depois se muda para Londres em busca de mais tranquilidade. Ali, junto com os The Wailers, com inspiração mais revolucionária, diga-se, de palavras de luta, mas buscando a paz, onde através de uma volta a suas raízes africanas e uma aguda religiosidade, realiza seu grande disco Exodus, consolidando seu sucesso mundial e voz primordial do estilo. Mas ele ainda carrega cicatrizes (não apenas físicas, com a descoberta do câncer, e sim pessoais) e precisa se reconciliar com sua Jamaica e tentar com sua música e voz pacificar o país.
Bob Marley – One Love tinha tudo para ser um baita de um filme. Tem bons atores, uma reconstituição coerente, um personagem fabuloso, trilha musical de primeira e ainda acerta em fazer um recorte importante da carreira do Bob. Mas, infelizmente, se perde num mosaico de pouca informação, música em excesso, ou melhor, tudo parece um grande videoclipe, sem profundidade, onde vemos pouco do artista jamaicano. Reinaldo Marcus Green faz tudo de uma maneira apressada, com aquelas insuportáveis frases feitas, como se um poeta passasse o tempo todo declamando, cria um Bob Marley quase imaculado, onde até um momento de fúria era por uma boa causa e esquece do lado imperfeito, humano e verdadeiro de Bob Marley, genial, visionário, político, mas de carne e osso. E faltam cenas de palco, inclusive, num grande momento da história da Jamaica, onde os dois líderes políticos se uniram em prol de uma iniciativa do Marley, o diretor usa imagens de arquivos.
Com roteiro fraco, com mais buracos que um queijo suíço, o filme abusa de imagens de flashback, mostrando o passado do artista, filho de um branco com uma jamaicana, o início dos The Wailers, nos anos 1960, e traumas individuais preenchidos com imagens e sonhos do passado, mas peca em se aprofundar mais na questão política da Jamaica, que eu falei, daria um baita filme, onde o envolvimento do Bob Marley foi crucial, mas aqui focado de forma confusa e pouca ousada, e com o roteiro de oito mãos, jogando no lixo uma oportunidade de fazer um filme emblemático. Momentos como a saída relâmpago de Rita Marley do hospital depois de ter sofrido um atentado e ter uma bala no couro cabeludo são de uma inércia total, ou a inclusão de Junior Marvin nos Wailers, em que parece que eles estavam contratando o maior guitarrista da história, tamanho o tempo da cena, são exemplos da falta de coesão do apressado roteiro.
Mas nem tudo é um naufrágio geral, a postura política e do rastafarismo de Bob Marley no filme, colocadas de uma maneira natural, o lugar da ganja como algo corriqueiro e sublime, e longe de uma apologia, são acertos. Tanto assim como as cenas de estúdio do cantor com os Wailers, o processo de criação, e é claro, a relação de amor entre ele e Rita, onde a conexão tanto sentimental e espiritual do casal traz agradáveis e genuínos momentos, e por mais que saibamos do extenso rol de traições de Marley, ainda é uma transcendental história de amor. Talvez muito do estilo chapa branca da cinebiografia seja mesmo porque seu filho Ziggy e a própria Rita fazem parte da produção do filme, o que naturalmente iria aliviar a barra pros deslizes (que não foram poucos) do genial artista.
Kingsley Ben-Adir teve a difícil tarefa de encarnar o regueiro. Por mais que tente emular com fervor a voz de Marley, alguns trejeitos, como a própria palhetada dele ao tocar algum instrumento, a imagem quase messiânica de Bob, faz a gente torcer o nariz e ver que ainda falta bastante para sua atuação realmente emocionar… Lashana Lynch, como Rita, está muito bem, dando o seu melhor para a icônica personagem, mas também sofre com um roteiro desorganizado e pouco profundo, onde apenas o talento dos dois artistas não são suficientes para tapar esses buracos.
Bob Marley – One Love não deixa de ser um filme bonito, um imenso videoclipe, com uma ótima fotografia, com canções maravilhosas como War, Exodus, Redemption Song, Three Little Birds, entre muitas outras, pulando a todo momento do filme, com uma história bem sacada, um grande momento da carreira do cantor, mas muito mal aproveitado, em um filme genérico, quase um reggae descompassado, onde pouco conhecemos do verdadeiro Marley. Deve obviamente agradar aos fãs, que se contentam com pouco, mas ainda está longe de ser algo definitivo e realmente muito pouco para definir quem foi, ou ao menos chegar perto, do gigante Bob Marley.