Crítica: Bingo – O Rei das Manhãs (2017, de Daniel Rezende)

Se você ainda é um adolescente em pleno 2017, certamente já ouviu alguém mais velho recordar os anos 80 com um misto de saudosismo e, talvez, um pouquinho de vergonha. Com a internet servindo a qualquer um que tenha um dispositivo capaz de se conectar e servir de máquina do tempo, a criança de hoje pode pesquisar à vontade sobre a história de nossa cultura televisiva. Está tudo ali salvo nos streamings: as roupas espalhafatosas, os telefones fixos de disco, os cabelos volumosos, as fitas cassete e, principalmente, as atrações infantis que jamais seriam veiculadas hoje em dia.

Entre os programas famosos na época, um certo palhaço Bozo fez um sucesso gigantesco no Brasil entre 1980 e 1991. Adaptado do já solidificado sucesso americano desde 1949, o personagem ganhou contornos um pouco mais ácidos do que o infantil que fez sucesso com os gringos. Aliás, esta acidez – adicionada com um baixíssimo medidor de pudor – é uma característica presente em toda a aura oitentista, que, hoje, parece absurda aos olhos do novo milênio. Ou você consegue me listar aqui quais programas destinados a crianças fazem piadas com palavrões e subtexto sexual, ou até exibem danças sensuais da Gretchen em pleno horário matinal? Todo esse material histórico, juntado com a biografia do mais problemático intérprete brasileiro do palhaço, resulta numa obra que tem a cara de sua época retratada: ágil, intenso, provocativo, exagerado e divertido.

O filme conta a passagem de Augusto Mendes (interpretado por Vladimir Brichta e inspirado em Arlindo Barreto, que foi o Bozo depois de 1982) como o palhaço Bingo, personagem de sucesso em vários lugares do mundo e que ganha sua versão brasileira sob o olhar de um produtor americano e da rígida diretora Lúcia (Leandra Leal). Ex-ator de pornochanchadas, Augusto vê o programa infantil da TVP (simbolizando a TVS, que virou o SBT) como uma possibilidade de atingir níveis de audiência igualáveis à da concorrência (referência clara à Globo). Levando uma carreira regrada à excessos, ele se vê cada vez mais obcecado pela fama e sem poder gozá-la na sua plenitude (por contrato, não podia revelar sua identidade pública), ainda mais influenciado pelo sucesso passado de sua mãe e atriz aposentada, Martha Mendes (Ana Lúcia Torre).

Já iniciando com uma mensagem de “ajuste o tracking automático para melhorar a imagem” – característica dos videocassetes – enquanto acompanhamos recortes de atrações da época, o expectador é situado num ambiente onde o quadro era delimitado pela razão 1:33 (o famoso quadradão). O mergulho de mais de 35 anos atrás é imediato e fica fácil para qualquer pessoa com idade o bastante se sentir numa verdadeira memória vívida de cores, música e familiaridade. Neste sentido, o filme consegue com maestria reproduzir não só a parte visual, mas a sensação de estarmos acompanhando uma vida distante em seus melhores (e piores) momentos, daqueles que ficaram guardados nas fitas VHS empoeiradas na estante.

Dirigido por Daniel Rezende, um montador já consagrado do nosso cinema e que atuou na profissão em filmes como Cidade de Deus, a duologia Tropa de Elite e Diários de Motocicleta, além de longas internacionais como RoboCop (2014) e A Árvore da Vida, a história de Bingo segue um caminho crescente em intensidade. Com o suporte de uma direção de arte certeira e minimalista, a reprodução dos ambientes e dos habitantes na narrativa mantém o expectador dentro da época durante toda a projeção, desde a aparência das telenovelas globais até os palcos de auditório que eram bastante comuns na vivência de qualquer pessoa que tivesse uma televisão em casa. Mas não só nas principais ambientações, os detalhes também não passam em branco e é, particularmente, divertido e melancólico observar os penteados e roupas dos personagens e como eles são uma reprodução exata das fotografias de época (destaco, pessoalmente, o momento em que o filho de Augusto se diverte com um brinquedo famoso e que, certamente, vai despertar saudade nos maiores de 30 anos).

Também cuidadoso em seu aspecto da cinematografia, Rezende e seu diretor de fotografia Lula Carvalho (Tropa de Elite, Paraísos Artificiais, O Lobo Atrás da Porta e As Tartaruga Ninja) exibem um controle bem medido na abordagem visual da obra. Banhada em cores fortes e com uma difusão de luz variando de acordo com o aspecto emocional e rítmico da história, a narrativa ganha vida e muita energia, saltando aos olhos num aspecto levemente fabulesco que justifica os exageros de uma época com o status mítico que tem hoje. Carvalho (sobrenome de peso para a área de fotografia no cinema, aparentemente) não economiza, portanto, em passar a intensidade do arco de Augusto para a representação imagética da narrativa. O diretor ainda mostra talento em usar seu conhecimento como montador para controlar aspectos interessantes da projeção e, ao invés de tomar o caminho óbvio do excesso de cortes, ele prefere dosar a lógica dos planos de acordo com a necessidade narrativa e estética. Por exemplo, ao optar por filmar em um plano sequência o momento em que Augusto experimenta ideias para construir a persona de Bingo no programa, ele cria a sensação real do nascimento de um ícone nos bastidores. Mesmo quando a opção preza bastante a estética, tudo funciona bem; assim, quando o protagonista passa mal em casa e vai parar no hospital, a transição é feita através de outro plano sequência que usa os próprios movimentos para simular uma elipse temporal (passagem de tempo no corte), o que acaba tornando a solução elegante e facilmente assimilada.

Acompanhando a fidedigna reprodução de época, Bingo é retratado no roteiro de Luiz Bolognesi (Como Nossos Pais, Elis, As Melhores Coisas do Mundo e O Bicho de Sete Cabeças) como um verdadeiro representante do excesso de sua época. Vladimir Brichta está nada menos que excelente em sua construção de Augusto e Bingo. Pai inquestionavelmente amoroso, não hesita em compartilhar com o filho a alegria e empolgação constante ao ser escolhido para interpretar o palhaço que se tornará famoso entre os amigos do filho. Se entregando ao papel, o ator consegue unir a característica de um Augusto inerentemente exagerado e meio irresponsável com o talento que tem para arte de fazer rir como palhaço – aqui cabe destacar a saudosa e excelente participação de Domingos Montagner como uma espécie de instrutor da arte circense, tendo realmente atuado na área.

Transformando Bingo em uma figura magnética, Brichta faz com que a imagem do apresentador comediante seja politicamente incorreta desde o início. Não se importando em reproduzir o bullying que acabara de presenciar em outro garoto da plateia, Bingo vira uma subversão do palhaço clássico ao imprimir um humor ácido e repleto de subtextos num ambiente infantil, fora quando abandona a indireta e usa, por exemplo, a própria plataforma para provocar os concorrentes de audiência. Usando cocaína nos bastidores e vivendo de orgias sexuais, Augusto vai se transformando numa imagem distorcida de si mesmo, o que prejudica sua relação profissional e familiar, principalmente a do filho. Este, vale ressaltar, é um arco que acaba representando um defeito do longa: a trama da relação entre pai e filho é um pouco prejudicada pelo caráter episódico da construção dos conflitos entre os dois (problema recorrente em cinebiografias, aliás) e pelo uso mais como um recurso de roteiro do que uma personalidade palpável por parte do filho.

Mas se o roteiro peca um pouco na supressão de alguns aspectos emocionais, ganha num tom cínico que costuma permear a toda narrativa. Fora, ainda, algumas quebras de clichês que acabam se tornando interessantes, como aquele em que somos levados a acreditar que a personagem de Leandra Leal seguirá por um caminho, quando, na verdade, surpreende pela força de uma personagem que parecia seguir para um enorme clichê. Também vale destacar que, embora a história real tenha sofrido mudanças, é interessante notar como as qualidades e os defeitos de Augusto o acompanharam, mesmo em um desfecho que parecia seguir para o óbvio. Mérito para Brichta e para a abordagem de Daniel Rezende.

Embalado por canções famosas da época e uma trilha com a cara dos anos 80, com seus sintetizadores, teclados e baterias eletrônicas, Bingo – O Rei das Manhãs é uma viagem muito divertida e intensa a uma época onde o “politicamente incorreto” tinha um peso bem diferente. A história de Augusto, Bozo, Bingo e Arlindo não é nada original para quem já viu outros exemplares do gênero, mas apresenta uma qualidade admirável e se iguala aos melhores exemplares, tanto do cinema nacional quanto do estrangeiro.

Portanto, enquanto aquele esperado filme de terror do palhaço assassino não chega, existe a opção de conferir este que, apesar de não ser nada igual ao outro, não é nenhum programa infantil atual (só é de outra época mesmo).

Trailer

Nota: 

Data de Lançamento: 24 de agosto de 2017 (1h 53min)

Direção: Daniel Rezende

Elenco: Vladimir Brichta, Leandra Leal, Augusto Madeira, Ana Lucia Torre, Tainá Muller, Emanuelle Araújo, Cauã Martins, Domingos Montagner, Pedro Bial

Sinopse: Augusto (Vladimir Brichta) é um artista que sonha com seu lugar sob os holofotes. A grande chance surge ao se tornar “Bingo”, um palhaço apresentador de um programa infantil na televisão que é sucesso absoluto. Porém, uma cláusula no contrato não permite revelar quem é o homem por trás da máscara. Augusto, o “Rei das Manhãs”, é o anônimo mais famoso do Brasil. Com muita ironia e humor ácido, ambientado numa roupagem pop e exagerada dos bastidores da televisão nos anos 80, o filme conta essa incrível e surreal história de um homem em busca do reconhecimento da sua arte.

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