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CRÍTICAS FILMES

Crítica: Berlin AlexanderPlatz

Crítica: Berlin AlexanderPlatz
  • Publicado em: fevereiro 19, 2021

Uma mesma história pode ser recontada de várias formas, em momentos diferentes, em lugares diferentes, agregando novos elementos, mas nunca perdendo a mensagem principal.

Aparentemente isso aconteceu com “Berlin Alexanderpatz”.

Originalmente essa história é do livro homônimo do alemão Alfred Döblin, obra que é apontada como um clássico da literatura alemã, tendo como centro Franz, de 41 anos e que deve se reerguer depois de ser preso.

O filme de 2020, dirigido por Burhan Qurbani, que também assina o roteiro adaptado, ao lado de Martin Behnke, foi destaque da 44ª edição do Festival de Cinema de São Paulo e agora chega aos cinemas por meio da distribuição da A2 Filmes.

No elenco Welket Bungué, Jella Haase, Albrecht Schuch, Joachim Król, Annabelle Mandeng, Nils Verkooijen, Richard Fouofié Djimeli, Thelma Buabeng, Faris Saleh, Michael Davies.

Nessa versão contemporânea Franz na verdade é Francis, um jovem vindo de Guiné Bissau, ambicioso, inteligente, mas altamente influenciável.

Francis fugiu não só de seu país, mas sim de uma época diferente, de alguma forma sua fuga aconteceu décadas atrás, mas ele chega a Berlin de 2020, lugar onde refugiados e apátridas não são tratados com o devido respeito.

Antes de continuar … Apátrida é aquele indivíduo que não “pertence” a nenhum país, há muitos anos a Organização das Nações Unidas (ONU) recomenda ações para que isso não aconteça, para que os países flexibilizem suas regras de nacionalidade e naturalidade, mas a crise dos refugiados da última década mostrou que ainda há muito a ser feito sobre isso.

No caso de Francis, por ter fugido de um país provavelmente por causa de perseguição ou guerra interna, ele pode ter cortado as relações com sua nação de nascença, mas também não é alemão, porque ainda não corresponde às regras deste país para assim ser considerado.

Enfim, questões burocráticas, a questão é que Francis está em uma situação difícil que, aos poucos, causa revolta nele, que sempre sonha em conseguir melhorar de vida. A primeira oportunidade é vender drogas para o estranho Reinhold, mas ele só aceita quando, por um acidente de trabalho, ele é demitido e não conseguiria outro emprego.

Reinhold é um ser estranho, fala quase sussurrando, parece ter uma certa dificuldade para andar, viciado em sexo e em dinheiro. Além disso tudo, ele consegue ser altamente convincente e envolvente perante Francis, chamando-o de irmão, sempre mostrando para esse novo amigo que somente ele o enxergava de verdade, como um ser humano.

Por ser refugiado, negro e tentar ser uma pessoa minimamente decente, Francis sofre todo tipo de humilhação por onde quer que ande.

Essa vontade de ser decente contrasta com sua revolta interna, que se mostra por meio de violência, piorando na medida que ele vai se aproximando de Reinhold, caindo na lábia desse “amigo”, mas só ele que sofre as consequências. Na primeira oportunidade de teve, Reinhold quase mata Francis em um acidente de trânsito.

Francis não morre porque a única pessoa que realmente o ajuda, Eva, resgata-o do lugar do acidente, contudo, isso não impede de o jovem perder seu braço (complicações do acidente).

Eva é a dona de um clube e se interessa por Francis logo quando o conhece, sempre sendo a voz da razão, uma voz que ele mal ouve. De toda forma, Eva coloca na vida dele Meize, uma prostituta com um sofá vago para acolher o rapaz em sua recuperação, embora ela pouco tenha tido interesse em ajudar.

Dois estranhos em uma casa com suas vulnerabilidades à vista … O clichê acontece, eles se apaixonam e, pela primeira vez em muito tempo, Francis se ver com a oportunidade de realmente ser feliz. Como Reinhold é incapaz de entender, ele sente inveja da felicidade de Francis, fazendo de tudo para acabar com essa esperança dele.

Reinhold se passa de cliente de Meize, faz ameaças a ela, mesmo sabendo que ela estava grávida, usa todo seu poder de influência para a convencer que Francis não é uma boa pessoa. No fim (spoiler) ele mata Meize.

E, depois de tantas recomeços na vida de Francis, depois de ser preso injustamente pela morte de Meize e por ter matado Reinhold na cadeia, ele ver uma pontinha de esperança … o bebê deles sobreviveu, ele sai da cadeia reencontra Eva com sua filinha.

O filme tem 3h de duração, sendo dividido em 05 partes, que são consideradas recomeços da vida de Francis, e é todo narrado por Meize, revezando pelo gemido ofegante Francis, remetendo a sua chegada na Alemanha (por mar, quase se afogando). Pelo o que entendi, esse som aparecia quando ele se sente ameaçado de alguma forma.

Quando à ligação com a obra clássica, não posso falar com propriedade porque não a conheço, mas acredito que dois elementos fazem essa ponte. Primeiro, a tentativa de Reinhold de mudar o nome de Francis para Franz, porque soa mais alemão e, para que ele mantivesse o moço em sua influência, ele agora era alemão.

O segundo elemento são cenas que parecem ser desconectadas. Em alguns momentos Francis para se lembrar de momentos de sua vida anterior, em uma comunidade rural, ora ele encara uma moça dançando, ora ele basicamente duela com uma vaca.

Isso foi meio confuso para mim, de primeiro achei que fossem flashbacks, dá para perceber a mudança de época pelo figurino, mas depois Reinhold aparece nessas cenas, então parece mais um lugar híbrido, entre suas memórias e sua psique naquele momento.

A trama é bem profunda, é necessário prestar atenção nas mudanças sutis, como a postura física de Reinhold (ele começa corcunda e depois vira um “elegante” empresário), mas é interessante ver como conseguiram mixar uma história clássica com uma problemática tão atual, como a crise dos refugiados.

Aliás, não tão atual, a Alemanha tem histórico de xenofobia e agressão aos estrangeiros em situações complicadas, como os refugiados. É certo dizer que na crise mais recente de refugiados na Europa, iniciada em meados de 2010 (mais ou menos), a Alemanha tentou aplicar leis de acolhimento, mais até que a França (berço dos Direitos Humanos), mas isso não apaga o fato de ainda haver muitos Francis sendo maltratados, seja em Berlin ou nas fronteiras europeias.

Os destaques do elenco vão para Welket Bungué, Albrecht Schuch e Annabelle Mandeng.

Annabelle Mandeng interpreta Eva, sendo uma figura muito importante em vários momentos do filme, seja por sua presença imponente, seja pelos seus questionamentos, seja pela sua amizade e seu amor por Francis.

Welket Bungué interpreta Francis, o ator é realmente nascido em Guiné-Bissau e tem uma vida acadêmica de peso, com uma graduação em teatro em Lisboa e pós-graduação em atuação pela UniRio. Unindo seu conhecimento científico, seu talento natural e seu background, ele entrega o Francis que a história merece.

Detalhe interessante, durante o filme o ouvimos falando em inglês, aprendendo alemão e falando algumas palavras dispersas em português.

Albrecht Schuch é o responsável pelo asqueroso Reinhold. Desde a primeira cena ele impressiona por sua atuação, ele tem aquele ar agridoce, atrai a vista ao mesmo tempo que causa asco. Isso agregado com sua capacidade de lidar com a linguagem corporal, sabendo lidar as mudanças sutis na postura.

A dinâmica entre Francis e Reinhold (Bungué e Schuch) funcionou tão bem que já angariou nomeações e prêmios para os dois, como o Festival de Estocolmo e de Batumi.

Até mais!

Written By
Nivia Xaxa

Advogada, focada no Direito da Moda (Fashion Law), bailarina amadora (clássico e jazz) e apaixonada por cultura pop. Amo escrever, ainda mais quando se trata de livros, filmes e séries.