Crítica: Belfast

“Não posso acreditar nas notícias de hoje / Não posso fechar os olhos e fazê-las desaparecer / Garrafas quebradas sob os pés das crianças / Corpos espalhados num beco sem saída”. Esses são alguns trechos da música Sunday Bloody Sunday que o U2 lançou em março de 1983, relembrando os famosos acontecimentos do Domingo Sangrento, que recentemente completou 30 anos. Na manhã de 30 de janeiro de 1972, milhares de pessoas se reuniram na área de Creggan, em Derry, Irlanda do Norte, para lutar por direitos civis, o que era raro numa Irlanda tomada pelo ódio entre protestantes e católicos. O que ocorreu depois foi uma guerra entre exército e manifestantes com barricadas, pedras, prisões, gás lacrimogêneo e balas de verdade que provocaram 13 mortes e 15 feridos e uma panaceia de ódio irlandês contra o governo britânico, em um evento que mudou de vez a convivência dos irlandeses com o Reino Unido. Esse episódio foi a cereja do bolo de vários eventos que vinham ocorrendo desde 1969, quando na Irlanda do Norte, principalmente em Belfast, a não tão harmoniosa convivência de protestantes e católicos começou a esquentar, já que os católicos exigiam um tratamento igual e mais direitos, provocando a ira dos protestantes que viam seu domínio ameaçado. Esses tais problemas de 1969 são o mote do autobiográfico filme de Kenneth Branagh e sua infância nas tumultuadas ruas de Belfast do fim dos anos 1960, falo de Belfast (idem, 2021), que estreia essa semana nos cinemas.

Buddy é um menino comum, que mora com uma amorosa família e que vive uma infância cheia de brincadeiras nas ruas de Belfast, na Irlanda do Norte. Ruas essas que mudam de uma hora para outra quando protestantes indignados com a ascensão dos católicos começam a persegui-los e querem expulsá-los dos bairros, provocando uma verdadeira guerra santa entre cristãos. Buddy se vê naquele fogo cruzado e não entende o porquê de tanta intolerância, que pode descambar para uma mudança definitiva em sua vida.

O filme mais pessoal de Kenneth, onde através de um olhar de uma criança, que vê seu mundo se despedaçar aos poucos, tenta nos contar um pouco da história recente de sua terra natal, devastada por ódio e intolerância no fim dos anos 1960. Com um roteiro primoroso, onde explora uma típica família de classe operária, que se une cada vez mais na dificuldade, Branagh conta uma alegoria de infância no meio do caos. Claro que não temos uma novidade nesse meio, filmes como Amarcord, A Vida é Bela, Império do Sol, entre outros, exploraram essa visão da infância brutalmente interrompida pelo pior da história da humanidade. Nesse caso seria uma espécie de lembrança do seu passado, na sua consciência, mágico, nessa Belfast tão inocente, mas tão violenta, temos um quê de Amarcord na trama. Um avô cheio de sabedoria, uma família amorosa, mas às vezes histriônica, as peripécias de uma infância de liberdade na rua, a paixão pré-adolescente, enfim, Kenneth tenta no meio da pólvora irlandesa mostrar o lado bom da vida, ao menos as partes boas que ele procurou lembrar e passou para as telas.

O menino Buddy está encantadoramente bem interpretado por Jude Hill, que mesmo com toda a poeira de conflito, procura manter sua inocência e esperança. Catriona Balfe, a mãe protetora do menino, aquela que faz qualquer coisa pela família, apesar de certo exagero tem uma interpretação boa e Jamie Dorman, como o pai de Buddy, com todos os clichês do gênero, mostra um paizão de propaganda perfeito ao menino. Mas clichê mesmo está Clarán Hinds, como seu avô, que passa o filme todo exalando filosofia barata e frases prontas, para o encantamento do garoto, mas pecando pela falta de realismo, o mesmo não podemos falar da excelente Judi Dench, como a avó de Buddy, essa sim com uma interpretação única, mostrando a sua maneira, com realismo e conformismo, a real situação que os tais “problemas” de Belfast podiam acarretar na família.

A fotografia em preto e branco dá um tom nostálgico ao filme, ilustrando passagens belas e outras nem tanto da infância de Buddy, que vê seu mundo particular, suas certezas, suas amizades e sua rua começar a ruir pela intolerância do homem. A trilha sonora assinada por um filho ilustre de Belfast, Van Morrison, com suas canções originais, abrilhanta mais ainda o filme, com a ótima Down to Joy, indicada ao Oscar, mas é a canção Everylasting Love, na voz do próprio ator Jamie Dorman, em uma cena emblemática do filme, em que ele canta para a sua esposa em uma festa, talvez a última deles em Belfast, que leva o crédito e marca o filme, tanto pelo arranjo quanto pela interpretação vibrante do ator.

 

Belfast tem aquele lirismo de filmes que misturam crianças e conflitos históricos, artifício primordial para provocar emoção, mas nesse caso, como é advindo de memórias do autor e diretor, se torna cabível e principalmente sincero, fazendo do filme uma experiência, apesar da tensão daquele momento histórico, agradável e tocante. Com dignas atuações, uma trilha sonora de primeira, uma fotografia que nos remete às reminiscências, Belfast cumpre sua missão, que é nos mostrar como o povo, a simples população, quem faz realmente a história, sofre com a intolerância e a estupidez do ser humano, no caso aqui uma guerra doentia de iguais separados por crenças, provocando uma revolução pessoal na vida das pessoas, famílias e sociedade e onde, às vezes, apenas a fuga daquele ambiente insano pode ser a solução para uma nova vida, uma ruptura, mas levando na memória as lembranças, tanto as boas quanto as ruins, da nostalgia de um passado idealizado ou não, mas que moldam para sempre o ser humano. Isso Belfast cumpre com louvor.

 

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