Crítica: Beau Tem Medo

Abro esse posicionamento crítico citando um trecho de um clássico de Raul Seixas, a canção Paranoia: “Quando eu esqueço a hora de dormir/e de repente chega o amanhecer/sinto a culpa que eu não sei de que/Pergunto o que eu fiz/Meu coração não diz/eu sinto medo, eu sinto medo”. Enfim, esse trecho do eterno mestre pode sintetizar o que é a vida do personagem Beau, do mais novo filme do cultuado Ari Aster. Culpa, medo, dúvidas, dificuldade de enfrentar rotinas mundanas e uma epopeia surrealista em busca de respostas que não existem, são o mote do aguardado Beau Tem Medo (Beau Is Afraid, 2023), filme do cineasta, que estreia nos cinemas tupiniquins nessa quinta.

Beau começa o filme numa sessão de terapia. Um cara quase cinquentão, hipocondríaco, paranoico, com uma vida fracassada e cheia de medos. O bairro que mora é uma selva urbana de violência, decadente, suja e ameaçadora. Beau mora num apartamento em uma vida quase sem sentido. Seu pai morreu quando o concebeu e sua mãe rica fica sempre na promessa que ele um dia, iria visitá-la. No dia que isso iria acontecer, uma série de acontecimentos o fazem ser impedido de realizar a visita. Mas o pior acontece e um acidente mata sua mãe e ele tem que ir ao enterro. A partir daí, Beau entra numa jornada nonsense, absurda e surreal, onde tem que enfrentar seus mais perturbadores medos.

Ari Aster, desde que concebeu ao mundo o incrível filme de terror Hereditário, em 2018, dando uma nova vida aos filmes de terror, e no ano seguinte o perturbador Midsommar, virou uma referência no gênero. Com roteiros instigantes, show de direção e atuações marcantes nesses filmes, sua nova película, Beau Tem Medo chega com extrema expectativa aos cinemas. De antemão já afirmo que suas três horas de um onírico delírio individual de Beau vai dividir opiniões. Uns vão dizer que é uma obra aberta a inúmeras interpretações, filmada com tomadas incríveis, divididas em quatro atos, onde traumas familiares, infância tóxica, medo de viver ou envelhecer são apresentadas em alegorias incríveis com uma fotografia excepcional e atuações brilhantes. Outros vão dizer que a obra é de uma extrema pretensão visual, aborda todos aqueles temas com superficialidade pseudointelectual, seus quatro atos são de uma bobagem arrastada, o roteiro é um emaranhado de teses furadas que nada dizem e talvez o único ponto em comum é que as atuações são gigantes. Eu confesso que o filme é realmente uma mistura dessas duas visões, apesar de concordar um pouco mais com a primeira.

Esses quatro atos do filme são divididos na parte inicial, que talvez seja a mais divertida e digamos fácil, que mostra Beau um homem hipocondríaco, cheio de medos, que mora num bairro barra pesada com os piores tipos que podemos imaginar e vive num frágil apartamento que o edifício mais lembra um pardieiro. Sua vida é galgada pelo seu terapeuta, a dominação da mãe que o controla mesmo à distância, seu trauma de seu pai ter morrido para ele nascer o atormenta e seu medo de enfrentar seu habitat, no caso o bairro pouco amistoso, pontuam essa primeira parte. O segundo ato é um pouco mais nonsense, ao ser atropelado é adotado por um casal que cuida dele e promete que irá levá-lo ao enterro de sua mãe, mas ele debilitado e temeroso, não cria coragem para se livrar dessa amarra e ir ver sua mãe morta. O que se vê ali é uma casa suburbana com um casal esquisito que perdeu o filho no exército e tem uma filha rebelde e pouco amistosa. Vi algumas semelhanças com Corra, de Jordan Peele, sempre na expectativa de alguma mirabolante história estar por trás daquilo tudo, mas nada acontece e a terceira é onde o diretor literalmente mais viaja. Beau conhece na floresta um grupo de teatro e essa experiência evoca o momento surrealista da obra, onde tudo é filmado como se fosse um grande sonho ou pesadelo e Beau projeta sua vida futura num delírio teatral. Já a última parte é a volta para casa, a moradia da mãe, local onde supostamente poderiam estar todas as respostas de sua atormentada existência. Tudo isso executado em três horas, que não chegam a aborrecer o espectador, mas confesso que achei certa pretensão do diretor, nesse caleidoscópio de imagens, algumas desconexas e sem nenhuma tentativa de fazer sentido, o que não deixa de ser talvez o objetivo dele, um filme delirante, pessoal e aberto para grandes interpretações, ou simplesmente grande tédio.

Tédio que não sentimos devido ao excelente trabalho de atores. Bom, Joaquin Phoenix mais uma vez nos dá um show com uma atuação visceral, onde passa em cada expressão, fala e olhar a total angústia do personagem, o que ajuda a dar credibilidade à paranoia visual de Aster. Tanto Patti LuPone, que faz a mãe de Beau com mais idade, quanto Zoe Lister-Jones, que a interpreta jovem, dão um show de interpretação, a primeira em momento crucial da trama e a segunda em flashbacks que tentam se encaixar no despedaçado quebra-cabeça que é o sentido da história. O casal que acolhe Beau também tem ótima sincronia, Amy Ryan e Nathan Lane fazem os perfeitos e um tanto sinistros benfeitores que só atrasam a vida do nosso herói. Kylie Rogers, como Toni, a filha do casal, mesmo aparecendo pouco, brilha muito no meio daquele esquisito cenário.

Na parte técnica o filme beira o impecável, mais uma vez Ari Aster transforma cada cena em um quadro pintado, closes precisos, tomadas com profundidade, fotografia expressiva, cada ato com tomadas e características diferentes, desde a selva de pedra animal, a casa de subúrbio, os cenários teatrais do terceiro e a imponente casa e sua mãe no ato final. Tudo extremamente bem construído em mais uma aula de direção e detalhismo visual do artesão que faz cada cena brilhar na projeção do filme, talento puro do mestre Aster.

Beau Tem Medo dará muito pano pra manga para diversas interpretações, irá dividir opiniões e com certeza não terá o sucesso dos seus dois longas anteriores, até por fugir do terror tradicional e flertar com a psicanálise, conteúdo de temas espinhosos como relacionamento mãe e filho, perdas familiares, futuro comprometido pelo passado, violência urbana, traumas e culpas. Mas como bem falei antes, tudo isso colocado num grande liquidificador, que custa a ter nexo entre si, além de ser um trabalho mais preocupado com brincar com o surrealismo visual do que responder questionamentos, porque por mais que o filme tenha todas essas indagações, não tem pretensão nenhuma de explicar nada e quem sair do cinema pensando que o filme é um delírio onírico, com todos nossos questionamentos mundanos e o quanto isso perturba nossas vãs existências, não me impede de condenar quem ache que aquelas três horas de pretensão artística de direção são apenas uma grande bobagem que não leva a nada. Meu conselho: tire suas paranoias de lado e o medo que o citado Raul Seixas tanto tinha e assista ao filme, se permita imergir na obra de peito aberto e tire você mesmo suas próprias conclusões.

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