Crítica: Ataque dos Cães

Às vezes a tradução de um título de um filme pode fazer estragos à fama do mesmo. Diversas produções tiveram pífias traduções, usando e abusando de trocadilhos, de tiradas infames, estragando totalmente o contexto da obra. O novo filme de Jane Campion, que em inglês é Power of Dog, teve a curiosa tradução como Ataque dos Cães. Para o individuo alheio à obra, que fica zapeando por títulos na Netflix, ao se deparar com esse, pode passar na cabeça que se trata de um terror animal, como Cujo e o Ataque dos Dobermans, onde o melhor amigo do homem vira um vilão sanguinário com os dentes prontos para destroçar humanos. Uma pena que tivemos essa tradução para esse bom filme que está disponível na Netflix, já faz um bom tempo e é recordista de indicações ao Oscar de 2022, com 12 delas. Mas tirando os simbólicos cães de lado, Jane Campion, talentosíssima realizadora, nos apresenta uma bela e reflexiva obra, Ataque dos Cães (Power of Dog, 2021).

O filme conta a história de dois irmãos, Phil e George Burbank, fazendeiros criadores de gado em Montana nos anos 1920. Phil é o protótipo do cowboy machão, sempre durão, de pouca educação e palavras, George seu irmão é mais centrado e acaba casando-se com uma viúva, Rose Gordon, que tem um filho adolescente de extrema sensibilidade, o que causa asco no hostil habitat em que eles vivem. Phil passa então a perseguir Rose, com seu jeito grosso e bestial e pega no pé do menino questionando sua masculinidade. Rose acaba afogando as magoas na bebida e Phil vive de um passado onde idealiza a influência de um antigo vaqueiro que moldou seu caráter. Até que Peter Gordon, já um estudante de medicina, resolve passar uns tempos na fazenda e, curiosamente, tenta se aproximar de Phil, provocando mais pânico na sua mãe e na dilacerada família.

Jane Campion faz uma adaptação bem pessoal do livro The Power of Dog, de Thomas Savage, de 1967. O livro pegava pesado em temas polêmicos na época como machismo, submissão da mulher, homofobia, masculinidade reprimida e homossexualidade, em Montana na década de 1920. Jane consegue nos conduzir a história fazendo que o espectador seja um observador impotente aos dramas de cada personagem, que sofrem em silêncio e sozinhos. O mau é representado por Phil, vaqueiro grosso e insensível que vive atormentando a cunhada e o filho dela. Representa um passado idealizado que já não condiz muito com seu tempo, e vê na ameaça da mulher e de Peter uma mudança do habitat selvagem que ele tanto idolatrava, não deixando de ser um meio de defesa de manutenção de sua sagrada normalidade. Ataque dos Cães até pode ser taxado como de um gênero de western, mas a diretora apena usa aquele habitat, onde os homens com sua masculinidade podiam tudo com seu poder agressivo, talvez como cães mesmo, em busca de destruir quem quisesse mudar a falida realidade.

O elenco está muito bem, Benedict Cumberbatch talvez tenha feito seu melhor papel no cinema, dando corpo e alma ao perturbado Phil, desde seu olhar, sua aparência, seus trejeitos, o ator desempenha com autoridade o estranho personagem. Kirsten Dunst também dá uma digna atuação à sofrida Rose, dando um ar de dignidade à personagem que não tem sossego com o cunhado. Kodi Smith McPhee, o garoto Peter, tem uma excelente e difícil atuação, mostrando a dificuldade de aliar uma sensibilidade a um ambiente de extremo machismo e hostilidade. Jesse Plemons, como o George Burbank, é o mais fraco do elenco, sempre com sua mesma cara de paisagem e pouco agindo em defesa de sua esposa, mas que estranhamente teve uma indicação ao Oscar para ator coadjuvante, enfim gosto é gosto.

O filme, devido a seu ritmo lento e angustiante silêncio (a trilha sonora de Jonny Greenwood, guitarrista do Radiohead é econômica e introspectiva, causando pouco impacto na obra), cansa um pouco, talvez propositalmente, para deixar o espectador mais na expectativa do desenrolar pesado da trama, mas que pode afugentar os mais apressados. A fotografia de Ari Wegner é sensacional, abusando de quadros e tomadas profundas, algumas homenageando alguns clássicos do gênero western, ilustrando a imensidão da região, abusando de tonalidades que mostram o ambiente árido e quente causando mais sufoco ao espectador. Pena que se perde um pouco essa experiência por ser um filme para se assistir em casa, imagens que encantariam nas telonas de cinema.

O Ataque dos Cães não é nenhuma obra prima do cinema, é um grande filme, com uma produção e direção acima da média, algumas boas atuações e com um roteiro e um ritmo que não deve agradar a todos. Um filme com cara de Oscar, preenchendo todo o checklist para abocanhar vários prêmios. É uma obra impactante, que mostra duas visões de mundo, que tem dificuldade de convivência, chagas do passado mal resolvidas e mesmo se passando em 1923, ainda apresenta questões (por mais que já lidemos melhores com elas), que ainda se fazem presentes, como machismo, humilhações e homofobia, mas acima de tudo é uma película introspectiva que mostra como uma mente perturbada e mal resolvida consigo mesmo pode fazer um devastador estrago, às vezes mais marcante que dentadas de cães furiosos.

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