Crítica: Armageddon Time

Certo momento do filme Armageddon Time, o garoto Paul Graff conversa com Johnny, seu colega de aula negro, na escola. Johnny seduz Paul dizendo que era fã de bandas como Ohio Players e Sugarhill Gang, sucessos do fim da disco music e Paul informa ao amigo que ele tem dois discos dos Beatles, o azul e vermelho, coletâneas com os maiores sucessos da banda. Paul encerra a conversa com a frase: acho que eles ainda vão voltar a tocar junto. Pois então, era meados do anos de 1980 em Nova York e reunião dos Beatles era um sonho acessível, mas a América vivia uma era de dúvidas, medos, crises e incertezas, que culminaram com a eleição de Ronald Reagan e, no fim do ano, com o assassinato de  John Lennon, fatos que abriram os anos 1980 e mudaram muita coisa na história da incipiente década. Com reminiscências da infância do diretor James Grey, que conta uma história americana, em 1980, em Nova York, estreia nos cinemas dessa semana o bom filme Armageddon Time (idem, 2022).

O filme conta a saga de Paul Graff, garoto que mora no Queens no ano de 1980. Ao contrário do irmão, estuda em uma escola pública, que segundo seus avós, judeus descendentes de imigrantes perseguidos na Europa, estava cada vez mais caindo de qualidade, aceitando até negros nas turmas. E Paul, que sonha em ser artista, tem como amigo Johnny, um garoto negro com uma vida sofrida que vive com uma avó doente, praticamente largado do mundo, e que sonha em ser astronauta e participar de missões espaciais. Os dois estão sempre em conflito com o professor autoritário, mas juntos querem viver seus sonhos, muitos deles apoiados pelo avô de Graff, Aaron Rabinowitz, que sempre paparica o menino e dá conselhos para ele ser feliz com o que ama. Paul vive em conflito também com seu irmão mais velho, esse estudante de uma escola particular, tem guarida na amorosa mãe Esther, e às vezes sofre com o truculento pai, Irvin Graff, que quer que o garoto seja alguém na vida. Uma típica família judia, com seus conflitos universais, que vive em uma América cheia de dúvidas e novos desafios.

Com roteiro do próprio James Grey, Armageddon Time nos mostra um panorama, através de relações humanas, de um Estados Unidos em mudanças. Com os anos 1980 batendo às portas e a chegada do ex-ator e governador da Califórnia, Ronald Reagan ao poder, o medo de um conflito mundial catastrófico, a tensão de uma recessão e aperto de cinto econômico com suas medidas liberais e uma nova fase de uma calejada América pós 1970 se misturam com os problemas dos Graff. Excelente reconstituição de época, desde as ruas sujas de Nova York, seus metrôs pichados, sensação de abandono na cidade, uma cidade que vivia no fundo do poço (sua reconstrução, ou leia-se, higienização seria mais pelos anos 1990, onde a cidade se reergueu a custa de projetos polêmicos, mas eficientes, principalmente na revitalização e na área de segurança, que deram resultado) e a família de Paul representa um pouco esse conflito e tensão que vivia o país. Um pai autoritário, que por ser encanador, teve dificuldades de ser aceito pela família judia da esposa, essa mesma família que sofreu com perseguições na Europa por serem judeus, mas que na América venceram na vida e emulam os seus preconceitos, a dificuldade de Paul ter sua liberdade de ser o que quer, ou ganhar apoio de ser um artista, ele pinta muito bem, mas tem pouco apoio da família, só do avô, que o mima demais e que sempre o guia pelo lado, para não desistir dos sonhos e mostrar para o mundo seu talento. E, é claro, o racismo escancarado com a amizade de garoto com o Johnny, o rapaz negro, que pretende ser um herói de viagens espaciais, mas não é levado a sério por ninguém, sofrendo com o racismo, desde os professores, à família de Graff e até dos próprios negros que zombam do sonho do menino.

Com um elenco muito bem escalado, o destaque fica para os garotos do filme. Paul Graff é muito bem interpretado por Banks Repeta, o garoto consegue passar todo seu drama interno, suas dúvidas e o quanto sofre com a indiferença sobre seus sonhos e por ver seu melhor amigo que apanha de todos os lados apenas por ser negro. Esse amigo é Johnny, também muito bem construído pela atuação de Jaylin Webb, que mostra toda a revolta do garoto, abandonado no mundo, que tem seus sonhos abortados pelo preconceito, mas jamais deixa de abandonar seus laços com Paul, o único que o acolheu. Anne Hathaway está discreta como a mãe judia, Esther, tendo poucos momentos de brilho no filme. Jeremy Strong, como Irving, o truculento pai da família, está mais à vontade no papel, mostrando que seus descontroles vêm de mágoas do passado mal curadas, numa grande construção de personagem feita por Strong. Anthony Hopkins, como sempre excelente, dessa vez como o vovô Aaron, um cara que até parece ser clichê, com frases e conselhos comuns, que interpretado por outro ator seria um chavão só, mas vindo do ótimo Hopkins, mesmo que numa atuação até média para padrões dele, consegue nos tocar e muito na película.

Armageddon Time, título levemente inspirado na música do The Clash, Armagideon Time, que toca no filme, que também tem como trilha alguns sucessos pulsantes da época, é um retrato de uma nova era que estava por vir, os temerosos anos 1980, com o medo que em qualquer momento um botão levaria  a Terra pelos ares, mas também foi a época do individualismo, das cores, da imagem, do som de novos ídolos e uma Nova América, um novo sonho americano. Os Graff são um microcosmo dessa nova fase, com seus conflitos internos, mas o filme fala principalmente de sonhos e amizade. Paul e Johnny são grandes amigos, que querem sonhar e viver seus sonhos, experimentam e saem das suas zonas de conforto, em alguns momentos lembra a amizade de Dustin Hoffman e Jon Voight, no clássico de 1969, Perdidos na Noite, onde uma improvável amizade tinha como desejo a fuga para a ensolarada Flórida. No caso, Paul queria pintar e Johnny voar, mas ambos queimaram a largada na inocência pré-adolescente, ao mesmo tempo não abandonaram um ao outro. Em outro momento do filme, quando Paul já está numa bacana escola particular, Fred Trump, pai do futuro presidente e conhecido milionário que fazia filantropia nas escolas americanas, discursa e diz que aqueles meninos e meninas seriam os novos advogados, os empresários, os CEOS, os investidores, os milionários de uma América que estava recomeçando, mas Paul não faz parte desse time e resolve abandonar as palavras do milionário, pois para ele aquilo pouco representava e o espectro materialista dessa nova era Reagan pouco atingia o garoto. Poesia visual pura, em um filme que não é nenhuma obra-prima, mas é necessário e agradável de ser conferido, até para relembrarmos uma época em que sonhos acabavam e novos sonhos não faziam a cabeça de toda a população.

 

 

Mais do NoSet