Crítica: A Cor Púrpura

A Cor Púrpura, talvez um dos filmes mais injustiçados do cinema, teve seu lançamento em 1985. A adaptação de um best-seller de Alice Walker, com direção de Steven Spielberg, música do genial maestro Quincy Jones e elenco de ponta como Whoopi Goldberg, Danny Glover, Oprah Winfrey, entre outros, emocionou o público com o romance epistolar de décadas da vida de duas irmãs, Celie e Nettie, separadas quando jovens. Com 13 indicações ao Oscar, não levou nenhum e, com o tempo, virou um clássico esquecido na filmografia do Spielberg. E injustamente. O filme é maravilhoso e abriu os caminhos para um novo Steven Spielberg, um divisor de águas na carreira do realizador. Anos depois, virou um celebrado musical da Broadway e agora, com um roteiro de Marcus Gardley, em 2023, coube a Blitz Bazawule adaptar a peça para as telonas, que estreia nesta quinta-feira nos cinemas brasileiros.

O filme conta a sofrida história de Celie e Nettie, duas irmãs órfãs de mãe que vivem no Sul dos Estados Unidos no início do século 20. Celie, constantemente abusada pelo pai, tem dois filhos tirados dos seus braços quando nasceram, e casa por conveniência com Mister Albert, viúvo com várias crianças para criar. Nettie resolve se mudar para a casa da irmã, mas Mister, de tanto assediar a menina que se esquiva de situações, a manda ir embora, e as duas se separam por décadas. Enquanto isso, vemos a evolução de alguns costumes de uma época, onde algumas mulheres já começavam a enfrentar o abuso autoritário dos homens e pessoas como Shug, uma cantora liberal e moderna, e Sofia, mulher do enteado de Celie, começam a despertar um nova Celie, que também descobre através de cartas escondidas por Mister, que sua irmã continua viva e com muita saudades.

Dessa vez Oprah, Spielberg e Quincy Jones estão em outras funções na película, agora como produtores executivos desse encantador musical, com direção de Blitz Bazawule. Confesso que fiquei receoso com o tal remake de um filme tão importante e bonito dos anos 1980, mas a sensibilidade de fazer um musical com a história das irmãs foi o caminho mais sensato para ganhar a simpatia do espectador. O filme, como roteiro, pouco acrescenta ao de 1985, com vários momentos em que cenas por cenas são emuladas quase idênticas ao original, e os números musicais, principalmente na primeira metade do filme, maquia muito bem a calejada vida de Celie. Tudo feito de uma forma, digamos assim, apressada, pouco se aprofunda na verdadeira melancolia, resiliência e submissão da personagem, onde grandes canções com vocais inebriantes e coreografias contagiantes servem para quebrar, e muito, o gelo da amarga trama. Na segunda metade, o filme carrega um pouco mais na tinta do drama, com performances mais densas, mas nunca perdendo o tom do filme, um musical otimista, luminoso e com canções magníficas.

E falando das canções. São músicas que misturam muito soul, blues, vocais deliciosamente exagerados e com nuances pop, muito gospel, arranjos certeiros e muita letra de fé, louvores ao Senhor, esperança, libertação feminina. É um musical à moda antiga, com grandes referências a clássicos do gênero  dos anos 1950, Broadway, com uma fotografia primorosa. A Cor Púrpura acerta como um musical moderno mas com ares de retrô. Se alguns podem ficar meio desconfiados que uma história tão triste poderia se tornar um filme tão otimista, com tintas tão vibrantes, por mais que a Celie tenha comido o pão que o diabo amassou na sua vida, não podemos esquecer que ela sempre teve esperança, ao seu jeito, de rever a irmã e os filhos, e na própria história do filme original, tanto no remake musical, fica provado que mesmo em um ambiente tão terrível, dar a chance ao perdão e a reconciliação talvez sejam as atitudes mais louváveis das nossas vidas , por mais difíceis de serem realizadas. E a essência de A Cor Púrpura de 2023, é isso: um balé visual, sonoro, com mensagens promissoras de ode à vida, ao perdão, à união , à fé e à esperança de uma vida menos sofrida e mais digna.

O time de atores tem uma sincronia perfeita, desde Fantasia Barrino, como Cellie Harris, que se não tem a força introspectiva de Whoopi Goldberg de 1985, nos apresenta uma mulher calejada mas jamais derrotada, Taraji P. Henson e Danielle Brooks, como as mulheres que quebravam as convenções Shug e Sofia, também estão ótimas nos papéis e até Colman Domingo, que mesmo sem ter um décimo da crueldade do personagem que Danny Glover criou no original, ao menos dá mais humanidade ao personagem de Albert, o Mister.

A Cor Púrpura de 2023 é um delicioso espetáculo. Um dos musicais mais bonitos dos últimos anos, com canções que fazem o espectador sorrir, cantar junto e bater os pés no chão do cinema, tem uma fotografia estonteante, com cores vibrantes e paisagens bucólicas que tem o mérito de transformar aquele pesado cenário do Sul estadunidense em um cintilante quadro vivo com atuações marcantes  e vozes belíssimas. Na parte dramática, pouco ou quase nada acrescenta ao filme de 1985, passa longe do drama e nunca se aprofunda realmente nas questões pesadas como racismo, patriarcado, machismo, violência contra mulher e preconceito, deixando isso para o clássico de Spielberg. Talvez poderia ter trabalhado melhor esses temas, já que o romance de Alice Walker é um texto forte e pesado de uma realidade não muito distante e chega a ser um pouco inverossímil, em meio a tanta violência e pobreza de espírito vermos tantas cantigas alegres e animadas. Mas como sempre falo, a música salva, e talvez no meio daquele furacão, a válvula de escape perfeita mesmo seja cantar, dançar e viver, e jamais perder as esperanças que dias melhores sempre estão por vir. E nisso, A Cor Púrpura, com seu final deveras emocionante, nos faz ter certeza que quanto mais a noite está escura é sinal que o dia logo irá dar suas caras. Concluindo, aproveitem duas horas e vinte de um brilhante musical, que à sua maneira e com muita qualidade, deixarão quem for assistir nos cinemas muito satisfeito.

 

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