Crítica: A Baleia

Em uma era em que se combate, e com razão, os preconceitos, talvez um dos maiores e mais traumatizantes deles seja a gordofobia. Em uma sociedade de aparências, padrões de beleza pré-definidos e onde a ode ao corpo perfeito é um objetivo, o gordo sofre, e demais, pelo menosprezo a suas medidas e que automaticamente o rebaixam como ser humano. E, quase na maioria, as pessoas com sobrepeso ou obesidade mórbida, sofrem de patologias tanto físicas quanto psicológicas. Programas como Quilos Mortais mostram esses dramas do cotidiano de uma sociedade cada vez mais acima do peso, por mais que a mídia tente vender o contrário. Essa semana estreia no cinema um dos poucos filmes que retratam o quanto o drama da obesidade pode mexer com as pessoas: A Baleia (The Whale, 2022), de David Aronofsky.

Charlie é um professor que ministra aulas online de redação e literatura. Nas suas videoaulas sua câmera está sempre desligada, pois alega que ela está estragada. Mas o que Charlie quer esconder é que tem mais de 250 quilos, abandonou a ex-esposa e a filha há quase uma década por se apaixonar por um aluno. Este aluno, por sentimento de culpa e de tabus religiosos cometeu suicídio, fazendo com que Charlie, literalmente, tenha se descontrolado e comido demais para esquecer. Ele tem como fiel amiga uma enfermeira que era irmã de seu companheiro e que tenta cuidar da saúde dele. As limitações físicas, dores, problemas de saúde e compulsão alimentar se misturam com uma tentativa de aproximação com sua filha, hoje uma adolescente problemática que nunca entendeu o pai e uma amizade com um menino religioso que, um dia, ao pregar a palavra de Deus a ele, tornou-se amigo. Charlie sabe que não tem muito tempo e por uma semana tenta exorcizar seus medos, culpas e dramas do passado.

Baseado na peça The Whale, de Samuel D. Hunter, que assina a adaptação para o cinema, Aronofsky tem como mérito explanar ao mundo o drama silencioso e compulsivo de uma parcela da população que sofre com a obesidade mórbida. Usando como cenário a sombria casa de Charlie, sempre na penumbra, mal adaptada para seu corpo, quase um ambiente claustrofóbico e às vezes apavorante (marcas do cinema de Aronofsky), além de um exterior deprimente, com uma cidade onde chove constantemente com muita água batendo na janela. Fatores que cada vez mais parecem aumentar o drama de Charlie, um homem brilhante, mas autodestrutivo, que nunca soube lidar com seus problemas pessoais, e agora, em risco de morte iminente, tenta a sua maneira, sempre carregado de culpa e baixa autoestima, enfrentar seus fantasmas, materializados na sua filha Ellie. A Baleia é um filme que carrega muito nas tintas a questão da culpa, o abandono, moral religiosa, depressão e simplesmente desprezo à vida. Charlie nunca soube lidar nem com a profissão, com a família, seus amores, suas perdas e principalmente seu corpo.

Mas fica impossível falar do filme sem hiperbolizar a atuação de Brendan Fraser. Mesmo carregado em uma verossímil maquiagem que o transforma num homem de 272 quilos, ele cria um personagem todo seu, sofre com suas angústias, não tem maturidade para enfrentar os problemas, vive pedindo desculpas por tudo, como se fosse um fardo o ato dele viver, e tudo isso com expressões marcantes do ator, que chora na medida certa, se revolta, se encolhe, uma soberba atuação, hoje favoritaça ao Oscar. A cena em que ele, desesperado, resolve comer tudo o que tem em casa, é chocante, tamanha a realidade de quem sofre com incontroláveis compulsões alimentares. O elenco do filme está todo muito bem, a insuportável, mas machucada filha Ellie, interpretada por Sadie Sink, brilha com os constantes embates, dela agressiva e o pai um passivo coração mole. A amiga e enfermeira Liz, interpretada por Hong Chau, talvez a única pessoa que se importe mesmo com Charlie, mostra todo seu carisma. Até Ty Simpkins, como o garoto pregador Thomas, tem uma atuação marcante.

Como o filme é uma adaptação de uma peça, o trabalho de atuação ganha um belo destaque, facilitando a vida dos atores. É claro que o filme tem alguns poréns, o ritmo, que até começa com uma maneira constante, carrega a trama bem até mais da metade da película, mas se perde bastante no lado dramalhão. Abusando de uma trilha sonora sensível, colocada para dar tons dramáticos em certas passagens, o que acaba atrapalhando, mais que emocionando. E fora que muitas arestas ficam mal aparadas da trama, com soluções rápidas e sem sentido até, o caso da filha dele com o pregador, ou até a volta da ex-mulher enchem mais lingüiça, ao invés de acrescentar algo impactante no enredo. A Baleia é um filme forte, tem a coragem de mostrar o quanto uma pessoa obesa sofre na sociedade, mas às vezes deixa de explorar essa temática para criar subtramas, que a meu ver chegam a cansar, o que o fazem ser um filme de ator, ficando longe de uma brilhante história.

Mas apesar dessas derrapadas, vale muito conferir o filme, a atuação de Brendan está soberba, e como disse, não só pelo trabalho de maquiagem, e sim por sua sensibilidade, mesmo na sua condição e sendo pisoteado por todos ao seu redor, ele sempre quer o bem de todo mundo e a comparação que ele faz de sua vida com Moby Dick, deixa claro que ambos tem que pagar pelo que fizeram. E sua culpa de ter assumido sua homossexualidade e abandonado a família pelo amor de sua vida, talvez mais que o seu excesso de peso, pesam muito mais na sua existência.

 

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