Não há nada melhor que lançar um filme inteiramente sobre escândalos de corrupção e gigantescas investigações policiais sobre o nosso intrincado jogo político numa época onde reina a polarização ideológica, não é mesmo? Pois é, não é. E sendo, talvez, um pouco alarmista, diria que pode ser até perigoso. Qualquer meio que provoque um discurso direito (ou indireto) sobre a atual situação do nosso país tenderá a inflamar o ímpeto dos mais apaixonados pela obrigação de se posicionar.
Mas, então, o momento não ser bom, significa que é errado? Um dos papéis da Arte, se é que existe uma cartilha a se seguir, é de representar, através de seus meios, quaisquer reflexões acerca do que seu autor pretende. No caso do cinema, acredito muito quando dizem que todo filme é, invariavelmente, um discurso político no sentido mais abrangente. A partir do momento que é transportada a nossa subjetividade a uma obra, é impossível se dissociar de um posicionamento, mesmo que ele esteja escondido nas entrelinhas.
Aponto tudo isso pelo seguinte: não é errado, quanto mais proibido, que um filme declare sua visão sobre um determinado assunto. A visão crítica não tem a obrigação de excluir os aspectos relativos ao enviesamento do autor para sua própria análise; fora, claro, a observação da obra como narrativa cinematográfica. O que nos leva a Polícia Federal – A Lei é Para Todos, mais novo filme nacional que busca retratar os principais acontecimentos da Operação Lava-Jato. Embora haja uma clara visão política no longa (e ele comete constantemente o erro de tentar convencer o contrário a todo tempo), o que o torna problemático é o maniqueísmo total de sua narrativa, colocando o reducionismo da obra acima de seu discurso.
O filme se concentra entre os antecedentes que levaram à primeira fase da investigação, que teve como principais nomes o doleiro Alberto Youssef (Roberto Birindelli) e o ex-diretor de abastecimento da Petrobrás, Paulo Roberto Costa (Roney Facchini), até a condução coercitiva do ex-presidente Lula. Uma equipe da Polícia Federal, composta, dentre outros, por Beatriz (Flávia Alessandra), Ivan (Antônio Calloni) e Júlio César (Bruce Gomlevsky), junto com uma força-tarefa do Ministério Público Federal, são responsáveis pela investigação que começa com lavagem de dinheiro e se encaminha para o envolvimento de grandes empresas, somas bilionárias em dinheiro e políticos dos mais altos escalões.
Vamos, de cara, separar os conceitos: parcialidade se refere ao exercício de escolher um “lado”, tomar partido de acordo com uma convicção, mesmo que não se deixe de analisar fatos; já uma narrativa ser maniqueísta significa que ela tende a reduzir seus elementos em extremos que polarizam a história. Aqui, o que mais importa para a análise é a segunda característica, já que é ela que transforma este filme num discurso fácil de mocinhos versus vilões. Não é preciso que ninguém com bom senso seja lembrado que aqueles agentes públicos que vivem do roubo de dinheiro público são os verdadeiros vilões, de fato. Já muito diferente é caracterizar um extremo da narrativa como malfeitores de novela e outro em que os protagonistas são retratados como verdadeiras caricaturas.
Fica fácil notar a tendência durante toda a projeção quando observamos a maneira como o roteiro, escrito por Thomas Stavros e Gustavo Lipsztein, trata suas principais peças. Os alvos da investigação são, em sua totalidade, figuras que agem e falam através de clichês que, por si só, já seriam o suficiente para transformá-los em vilões de novela. Tudo se potencializa a piorar quando seus intérpretes fazem as escolhas mais óbvias possíveis. “Você não sabe com quem está lidando”, diz um dos investigados quando está sendo preso, com uma postura que mais parece um chefe de máfia saído dos anos 1930 – esta é, aliás, uma característica que se mantém constante durante todo o enredo, desde de a mulher de um doleiro que aparece gargalhando numa banheira de luxo enquanto toma champanhe, até um ex-presidente da República que é um verdadeiro Al Capone durante suas aparições (e de novo, não chamo atenção ao questionamento sobre o personagem real, e sim a maneira unidimensional com a qual é caracterizado pelo roteiro e por Ary Fontoura). Mesmo quando o filme parece acreditar que está passando o pano para os oponentes, fica clara a mensagem, por exemplo, quando o pai de Júlio aparece sempre chamando o filho carinhosamente de “burguês” ou quando brada que “eles lutaram na ditadura para você poder ter o direito de investigar”, frase que é claramente subvertida como se todo um espectro político se reduzisse a uma frase de efeito.
Não só com os personagens, mas a trama em si é retratada como uma verdadeira busca de super-heróis por justiça e, embora o texto queira imprimir o tom de investigação criminal, ele acaba restrito ao extremo didatismo. Ao contrário do que acontece em filmes como A Grande Aposta, onde um assunto inerentemente complexo encontra saídas criativas para se explicar, aqui, no caso, tudo esbarra na exposição e nos monólogos munidos de discursos edificantes. Mesmo quando há um motivo nobre para conferir drama aos personagens, isso só acontece no lado “mocinho” e, geralmente, através de recursos batidos, como a postura do “honesto arrependido” diante das escolhas do passado de Júlio ou como as que mostram Sérgio Moro (Marcelo Serrado) como o “homem de família” (alerto, novamente, que este conceito narrativo é pejorativo e se difere do que pode significar na realidade). A exposição chega, ainda, a momentos constrangedores, como aquele em que os policiais examinam um quadro esquemático enquanto explicam uns para os outros conceitos básicos que não fariam sentido serem elucidados da maneira como acontece, com direito, inclusive, ao infame “então quer dizer…”: frase que sempre antecede uma repetição para explicar ao público o que a narrativa não conseguiu contar através de sua história. O espaço que faz destoar a gritante diferença com que são tratadas as figuras faz com que os personagens soem como bonecos ambulantes que enunciam monólogos de moralidade e maldade em meio a quase todo o escopo de diálogos do filme, o que, basicamente, retira qualquer sutileza que poderia maquiar o maniqueísmo da narrativa.
Porém, o longa, dirigido por Marcelo Antunez (Qualquer Gato Vira-Lata 2), tem sua parcela de competência técnica. Conferindo um ritmo ágil, principalmente em seu 1º e 3º atos (há uma significativa “barriga” que deixa o meio um pouco cansativo), o montador Marcelo Moraes (Operações Especiais, Meu Nome Não É Johnny) certamente se inspira nos thrillers policiais para costurar suas sequências de investigação, o que deixa o filme com uma estética competente. E se falamos do gênero, o diretor também consegue eficiência nos momentos mais tensos que envolvem perseguições, mesmo que algumas delas sejam prejudicadas pelo excesso de planos fechados (parece uma preocupação em exibir a obra para o público de televisão), e outras sejam um pouco sabotadas pelo exagero na abordagem documental, como a insistência em usar mini closes rápidos em diálogos envolvendo vários personagens num ambiente. No geral, até se pode argumentar que o filme funciona como um simples exercício de gênero, mesmo com os seus variados defeitos.
Ao final, Polícia Federal – A Lei é Para Todos não é fraco porque pretende escolher um lado no debate (reconhecendo, ainda, seu valor em apresentar dados e situações factuais), e sim porque escolhe o pior caminho para tal. Mesmo que tenha seus bons momentos como um filme de gênero, sua narrativa cai numa polaridade que não é aquela do discurso ideológico, mas sim a dos extremos na construção da trama e dos personagens. Afinal, podemos até observar extremos durante as discussões políticas do dia-a-dia, mas heróis e vilões são conceitos ultrapassados na vida real.
Trailer
Nota:
Data de Lançamento: 7 de setembro de 2017 (1h 47min)
Direção: Marcelo Antunez
Elenco: Antônio Calloni, Flávia Alessandra, Bruce Gomlevsky, Marcelo Serrado, Rainer Cadete, Roberto Birindelli, Leonardo Franco, Roney Facchini, Ary Fontoura
Sinopse: O filme conta a saga da maior e mais bem-sucedida operação de combate à corrupção da história do país – a Operação Lava Jato. Pelo ponto de vista do delegado Ivan (Antonio Calloni) e de sua equipe da Polícia Federal, em conjunto com a força-tarefa do Ministério Público Federal, o longa revela os esforços para desvendar o esquema de lavagem de dinheiro e pagamento de propinas a executivos de uma estatal de petróleo, empreiteiras, partidos políticos e parlamentares. O thriller mostra ainda o papel decisivo da Justiça para que a investigação não fosse destruída pelas forças políticas envolvidas.
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