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FILMES CRÍTICAS

Coringa (Joker): profundo, marcante e de um realismo assustador. Obra-prima!

Coringa (Joker): profundo, marcante e de um realismo assustador. Obra-prima!
  • Publicado em: outubro 10, 2019

Quando anunciaram um filme solo do Coringa, incontáveis críticas surgiram. Os fãs mais puristas gritavam que jamais haveria uma atuação como a de Heath Ledger, enquanto outros vociferavam que um filme apenas do Coringa (sem o Batman) seria impraticável. Bem, tenho o prazer de informá-los que estavam incondicionalmente errados!

Só para situá-los, o longa-metragem bateu o recorde histórico de bilheteria nos EUA ao obter nada menos que 93,5 milhões de dólares em sua abertura. Mas há muitos outros fatores para incentivá-los a assistir essa obra de arte.

“É impressão minha ou o mundo está ficando maluco?”

Arthur Fleck

Antes de prosseguir com o review, deixo os links para algumas histórias que ajudarão os “iniciantes” a compreender um pouco melhor a mente deste vilão que se consagrou por ser a antítese do Batman:

a) Batman – A Piada Mortal

b) Batman – O Homem que ri

c) Batman, Coringa e o Máskara

Loucura e lucidez.

A construção de um personagem não é simples. No caso do Coringa, isso se torna ainda mais complexo, principalmente se levarmos em consideração que já houve outras versões da personagem. Mas o roteiro de Todd Phillips e Scott Silver, aliado à sólida interpretação de Joaquin Phoenix são indispensáveis para que nos deparemos com um novo Coringa (para o cinema) que tem elementos já vistos nos quadrinhos. Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) é um homem atormentado por problemas mentais, dependente de medicamentos e também dependente de uma mãe que ele ama e cuida. Há traços de loucura em algumas de suas atitudes, incluindo sua inocência em algumas passagens, mas o que mais impacta é o despreparo dos ditos “normais” ao se depararem com um homem com problemas. Arthur sofre de uma doença que o faz rir nos momentos mais impróprios, uma característica que levas as pessoas a enxergarem um doente, um perigo. Esse preconceito, fruto do desconhecimento, o transporta para uma condição de pária, um verdadeiro excluído.

Em alguns de seus momentos de lazer, Arthur busca ajuda médica e, infelizmente, ela é de pouca valia. Ao contemplarmos o homem e seus problemas, concluímos que a sociedade está quase que totalmente despreparada para lidar com indivíduos esquizofrênicos, autistas, depressivos ou portadores de quaisquer outras síndromes que os coloquem em conflito com os ditames comportamentais que regem as vidas dos chamados normais.

Entre a loucura e a lucidez, Arthur oscila na luta para tentar se incluir em um grupo que não o quer, apenas o tolera.

Uma gradual escalada.

Arthur é um homem com objetivos bem claros: cuidar da mãe, trabalhar e fazer algo que ele acredita ter talento – a comédia. Desde os primeiros minutos nós contemplamos sua jornada solitária. Ele quer alegrar as pessoas, quer ser um bom filho, um bom empregado e um homem de bem, mas isso é muito difícil quando risadas quase surtadas surgem do nada. Uma doença o coloca numa posição de inferioridade e estranheza.

Ao se deparar com pessoas que não se importam com seus problemas mentais e não querem ajudá-lo no aprimoramento como ser humano, Arthur é encurralado aos poucos por uma sociedade injusta e fria, onde sua articulação, bens e aparência são mais importantes que a índole e o caráter. Ele não é mal em sua essência, porém fatos isolados vão quebrando as barreiras impostas pelos medicamentos e pelo amor que tem pela mãe. Gradualmente o homem dá lugar ao monstro.

É possível traçar um paralelo com o filme Um Dia de Fúria, mas “Coringa” leva essa transição de ser humano comum para alguém absolutamente fora de controle para outro patamar infinitamente mais elevado.

Fé em monstros.

Arthur é um homem de princípios, alguém acostumado a uma rotina e que se mantém nesse cotidiano para que sua própria lucidez seja preservada. A visita à psiquiatra, o trabalho como palhaço, a ajuda aos doentes através de um serviço parecido com o nosso Doutores da Alegria, sua caminhada diária e até os programas que assiste com a mãe (ela o trata por “Happy”). Tudo isso faz parte de um “ritual” que o distancia dos problemas que sua condição mental impõe.

Do outro lado da balança nós encontramos um mundo tal qual o nosso: frio, maligno, separado em castas sociais e injusto. Novamente preciso frisar que essas condições existem em quase todas as sociedades e, mesmo assim, a esmagadora maioria prossegue sua vida. Arthur Fleck é um indivíduo que vive em um lugar pobre, sofre por preconceito e depende de uma ajuda do governo para ter seus remédios.

Ele também se sustenta na figura do apresentador de TV, Murray Franklin (Robert De Niro), um homem que alcançou o estrelato por intermédio da absoluta ausência de pudor e caráter. Murray não poupa esforços para agradar seu público, mesmo que isso seja sinônimo de humilhar alguém em cadeia nacional. Quando a fé de Arthur em Murray rui, assim como o amor em alguém muito importante para ele, os grilhões que o mantinham sobre controle são quebrados e, infelizmente, um monstro é libertado.

Um filme de origens.

Deixo claro aos leitores o seguinte: Coringa é um filme de origens, um filme que busca não somente responder uma das perguntas mais antigas da DC Comics (qual o passado do Palhaço do Crime), como também dá uma visão mais forte e interessante sobre a “origem” do Batman, principalmente por interligar a vida do vilão com a do Homem-Morcego de um jeito surpreendente.

O longa-metragem serve para trazer ao espectador uma visão incomum de um personagem da DC que cativou os leitores por meio de sua loucura. Aliás, o Coringa é um vilão que não quer o fim de seu antagonista, apenas deseja que ele também sorva do vinho da loucura, tal como visto nas HQ Asilo Arkham e A Piada Mortal. Fica uma questão no ar: até quando um homem suporta (sem reagir) a pressão do dia a dia, o descaso dos que estão próximos, o isolamento que se amplia conforme a sociedade evolui?

Fragmentos dos quadrinhos.

O Espectador mais atento perceberá que há elementos de diversas histórias dos quadrinhos do Batman e do Coringa embutidos no roteiro de Joker. O uso de noticiários para ilustrar o caos que atinge Gotham  e o abandono da cidade por seus governantes (tal como visto em Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller), o escárnio do público diante de um louco com pretensões a comediante (exatamente como mostrado em A Piada Mortal), o longo histórico do Coringa no Asilo Arkham (presente na trama de Asilo Arkham), a conhecidíssima cena da morte dos pais de Bruce (presente em diversas histórias, mas ilustrada com maestria em Batman: Ano Um), a cena onde o Coringa é entrevistado (claramente baseada na mesma cena de Cavaleiro das Trevas) e a multidão que segue um líder alucinado e propagador do caos (visto de forma diferente no visual, porém bem próxima do ponto de vista ideológico em Cavaleiro das Trevas).

A presença da vizinha Sophie (Zazie Beetz) faz um paralelo com a esposa do Coringa, ainda apenas um comediante desempregado, na clássica A Piada Mortal. A presença de uma mãe para cuidar também remete à mesma trama (onde uma mulher é o fio que o mantém na lucidez), guardadas as devidas proporções, óbvio.

Com um pouco mais de paciência será possível encontrar outros detalhes embutidos na trama.

Causa e consequência.

A ascensão e transformação de Arthur Fleck no Coringa são frutos de um abandono sem precedentes e de uma intrincada rede de mentiras e escárnio. Arthur é doente, mas não tem uma essência maligna. Ele tenta a todo custo se integrar em uma sociedade que o rejeita, seja por preconceito e desconhecimento, seja por pura maldade. As correntes que o prendem (correntes morais) são lentamente rompidas por atos isolados que se somam nele, algumas vezes atingindo-o moralmente ou até mesmo fisicamente.

O homem que virá a se tornar o mais cruel e insano criminoso de Gotham nem sempre foi assim, mas o oportunismo, o desconhecimento e o descaso pelas doenças mentais (lembro que essa é uma época onde os Especiais eram chamados de Retardados) o quebram. As mentiras sobre sua origem também servem como alicerce para moldar um indivíduo sem controle, já que ele perde dois pilares de uma única vez ao descobrir sua verdadeira história e ao perceber que seu ídolo é um homem sem índole e capaz de lucrar com a desgraça de Arthur.

O Coringa é marcado pela presença de incontáveis pessoas mascaradas como palhaços. Eles mostram a ele que é possível sair do anonimato e do gueto ao impor sua vontade. O que os cidadãos de Gotham não esperavam era que essa ascensão traria consigo um monstro sem qualquer apego à vida humana.

Comparações.

Tentaram fazer comparativos entre este Coringa e os demais, sobretudo o interpretado por Heath Ledger. Esqueçam isso, por favor. Não há motivos para comparar ou degradar as versões atuais, já que há elementos de todos eles presentes na interpretação de Joaquin Phoenix, ao passo que esse Coringa é ímpar, único.

A trama do filme passa longe das conhecidas histórias de super-heróis, ainda que nas entrelinhas eles estejam presentes.

Comparar é tentar minimizar uma atuação brilhante presente em uma história também espetacular. Este filme é único por ter a coragem de mostrar a intimidade de um monstro adormecido que foi acordado por pessoas que jamais viram o potencial destrutivo nele presente.

Alerta.

E por falar em potencial destrutivo, o longa-metragem deixa um claro alerta sobre pessoas com problemas que são esquecidas ou desprezadas. Em alguns casos, infelizmente, essas pessoas chegam a um ponto onde apenas lhes resta fomentar o medo e a morte. Os motivos não são importantes, pois nós os desprezamos ao longo dos anos. Tal como uma bomba armada e prestes a explodir, mas desprezada por não acreditarmos que ela realmente possa vir a ser detonada.

Repito: há traços de demência, autismo e esquizofrenia presentes no comportamento diário de Arthur. As pessoas ao seu redor sabem de seu problema (aquelas mais próximas), ainda que optem por desprezá-lo.

Esclareço que não compete ao cidadão comum o cuidado, especificamente, ao doente mental ou à pessoa especial. Entretanto, compete a este cidadão manter o respeito e a dignidade dessas pessoas, algo que não vimos em boa parte da trama de Coringa.

Trilha sonora.

Ambientando aparentemente nos anos 80, Coringa é um filme regido por sua trilha sonora. Desde as músicas de época até os sutis e belos arranjos musicais de Hildur Guðnadóttir, tudo colabora para trazer as emoções a outro patamar. Esta é uma obra que une perfeitamente a música à atuação. Definitivamente, o filme ganha em grandiosidade com as músicas que pontuam cada momento da obra.

Comparações e questionamentos.

Alguns sites e jornais querem estabelecer um vínculo entre este Coringa e as demais versões, principalmente a feita por Heath Ledger. Vejam, não há como estabelecer comparações em função de uma única coisa: a linha temporal. Tal qual o Batman de Ano Um, este é um Coringa em criação, em formação. Aliás, este pode até mesmo não ser a real jornada do Coringa, pois os quadrinhos já comprovaram que estabelecer uma origem para o vilão é quase impossível, dado seu passado absolutamente desconhecido.

Teorias apontam “n” possibilidades para a trama e seu desenrolar, inclusive a inexistência da própria trama, talvez fruto da mente doentia do Coringa, mas o que importa é o resultado final: um filme conduzido com maestria, belíssimo visualmente e com um roteiro coeso, sombrio e à altura da mitologia do vilão.

Em suma, o fato de a história ser real, canônica ou falsa sobre a origem dele é algo irrelevante. O roteiro é impecável, tenso e mostra uma competência ímpar para abordar temas complexos como o descaso das autoridades, relacionamentos, loucura, intolerância e o papel da mídia na sociedade atual.

Ligações perigosas.

A família Wayne, incluindo o garoto Bruce, é parte indissociável da história. Ela está ligada a pontos importantíssimos da vida de Arthur e ao surgimento do Coringa.

As poucas cenas de Bruce são interessantes por mostrarem o menino antes do vigilante. Ponto positivo para o roteiro que se vale desse recurso para dar mais drama ao filme.

Outras ligações são vistas com muita qualidade, tais como a relação de Arthur com os colegas de trabalho, seu relacionamento com a vizinha, o convívio com a mãe e o passado ligado ao Arkham.

Cinema raiz.

Não esperem efeitos visuais impactantes ou heróis cheios de poder. O que se destaca em Coringa é a qualidade técnica, as atuações e um roteiro impecável. Uma paleta de cores aplicada com talento, som arrebatador, figurino e ambientação fenomenais, além de um elenco grandioso. Tudo isso ganha o status de obra-prima quando Todd Phillips se vale do cinema mais tradicional para trazer ao espectador uma experiência única, forte e inesquecível. E mesmo não sendo um filme

Esse é o máximo que posso falar sobre Coringa sem estragar sua própria experiência.

Vá aos cinemas e se prepare para ver um filme único e brilhante… E que venha a cerimônia do Oscar, pois certamente teremos algumas piadas bem interessantes nela.

 

 

 

 

 

Written By
Franz Lima

Escritor de contos de terror e thrillers psicológicos, desenhista e leitor ávido por livros e quadrinhos. Escrever é um constante ato de aprendizado. Escrevo também no www.apogeudoabismo.blogspot.com