Conto: Por ti, Cassandra.
Conto escrito por Franz Lima, publicado originalmente na coletânea “Cassandras“.
Por Ti, Cassandra
I
Jacques está há pouco tempo como bombeiro. Em seus dois anos e meio de serviço já passou por muitas situações incomuns. Hoje, para variar, uma novidade o atingiu absolutamente desprevenido.
São quase 18 horas e o dia correu calmo. Chegou às 07h30 para poder tomar o café da manhã e entrar de serviço. O plantão é de 24 horas corridas e isto implica em sua saída apenas no dia seguinte.
São quase 18 horas e o dia correu calmo. Chegou às 07h30 para poder tomar o café da manhã e entrar de serviço. O plantão é de 24 horas corridas e isto implica em sua saída apenas no dia seguinte.
Formou e acompanhou o cerimonial à bandeira. Por ser uma sexta-feira, todos cantaram o hino nacional e Jacques, como a maioria, reclamou disto, apesar de ter plena convicção da importância desta demonstração de patriotismo.
O restante do expediente correu normal. Não houve uma ocorrência grande o suficiente para tirá-lo do quartel e, por isso, a televisão foi sua leal companheira entre um cochilo e outro.
Mas a calma acabou quando o Oficial de Dia acionou o grupo de socorro externo. Eles teriam que averiguar um pedido de resgate a um escritor famoso. O homem estava desaparecido há três dias e a vizinhança suspeita de sequestro ou algo pior. O apartamento do homem está fechado e ele não tem parentes ou amigos, excetuando-se o agente e as pessoas da editora à qual ele trabalha, responsáveis por informar à polícia de seu desaparecimento e também da falta de retorno no celular, aparentemente desligado.
O resgate foi composto com um médico, dois enfermeiros, um socorrista e um motorista na UTI móvel. Em outra viatura, seguiram Jacques e Pedro, para remoção de um possível cadáver.
Já uniformizados, foram ao apartamento indicado. Apesar de ser um prédio muito bonito, não havia elevadores e subiram as escadas até o 4º andar, onde uma vizinha mostrou o apartamento do escritor desaparecido.
Bateram à porta por mais de 5 minutos sem qualquer resposta. Olharam pelo vão da porta, mas, estranhamente, algo impedia a visão.
Sem outra opção, a porta foi arrombada. A escuridão era intensa, exceto por uma televisão ligada, fora do ar. Um dos enfermeiros e o socorrista entraram e, instantaneamente, vomitaram. O cheiro de podridão atingiu os homens. Jacques ficou tonto e quase caiu. Lanternas foram acesas, iluminando aleatoriamente algumas partes do apartamento. Havia muito sangue pelo chão, que estava pegajoso. As portas receberam borrachas para vedar e as janelas foram lacradas por pregos e cola.
Não restava qualquer dúvida: alguém fora assassinado. O médico acionou a polícia, enquanto a equipe de socorro avançava ainda mais para o interior do lugar. Dez dedos de mãos estavam dispostos em forma de seta e, com esta indicação, encontraram algo indefinido.
Jacques estava mais atrás quando os gritos começaram. Homens o empurraram sem se importar com a escuridão e os tombos pelos choques com os móveis. O pânico era tangível, palpável.
O jovem bombeiro estava impregnado pelo medo, porém a curiosidade era maior. Com lentidão, ele foi à frente, ciente de que algo iria atingi-lo de uma forma diferente. E seu temor se concretizou quando a lanterna iluminou o que parecia ser um quarto. Lágrimas brotaram em seus olhos e, naquele momento, a alma de Jacques foi consumida pela certeza de que Deus não estava naquele lugar.
Eram 19h26 do dia 6 de junho de 2010. Dois seres humanos estavam mortos no apartamento do escritor Paul Wolfghann. Um tinha o corpo podre. O outro estava com a alma e a mente fedendo tanto quanto os restos desossados encontrados.
Bateram à porta por mais de 5 minutos sem qualquer resposta. Olharam pelo vão da porta, mas, estranhamente, algo impedia a visão.
Sem outra opção, a porta foi arrombada. A escuridão era intensa, exceto por uma televisão ligada, fora do ar. Um dos enfermeiros e o socorrista entraram e, instantaneamente, vomitaram. O cheiro de podridão atingiu os homens. Jacques ficou tonto e quase caiu. Lanternas foram acesas, iluminando aleatoriamente algumas partes do apartamento. Havia muito sangue pelo chão, que estava pegajoso. As portas receberam borrachas para vedar e as janelas foram lacradas por pregos e cola.
Não restava qualquer dúvida: alguém fora assassinado. O médico acionou a polícia, enquanto a equipe de socorro avançava ainda mais para o interior do lugar. Dez dedos de mãos estavam dispostos em forma de seta e, com esta indicação, encontraram algo indefinido.
Jacques estava mais atrás quando os gritos começaram. Homens o empurraram sem se importar com a escuridão e os tombos pelos choques com os móveis. O pânico era tangível, palpável.
O jovem bombeiro estava impregnado pelo medo, porém a curiosidade era maior. Com lentidão, ele foi à frente, ciente de que algo iria atingi-lo de uma forma diferente. E seu temor se concretizou quando a lanterna iluminou o que parecia ser um quarto. Lágrimas brotaram em seus olhos e, naquele momento, a alma de Jacques foi consumida pela certeza de que Deus não estava naquele lugar.
Eram 19h26 do dia 6 de junho de 2010. Dois seres humanos estavam mortos no apartamento do escritor Paul Wolfghann. Um tinha o corpo podre. O outro estava com a alma e a mente fedendo tanto quanto os restos desossados encontrados.
O promissor bombeiro nunca mais voltou a falar.
II
Ela despertou sem saber o que ocorria. Sua cabeça doía e os olhos pareciam querer explodir. As mãos formigavam, ao passo que seus ouvidos captaram gritos, cânticos e urros. Algo, pensou, estava terrivelmente errado.
Cassandra abriu os olhos e sentiu a dor da luz a penetrar-lhe as pupilas. Suas mãos foram amarradas com extrema habilidade e força, o que gerava a sensação de dormência. O corpo balançava em um ritmo veloz. Alguém muito grande a transportava nos ombros, indiferente ao seu sofrimento. Por instinto, a jovem mulher permaneceu calada. Em seu íntimo, algo indicava ser este o caminho para viver mais.
Ao redor, homens, mulheres e crianças clamavam por piedade, força ou coragem. Outros pediam colheitas férteis e mulheres mais férteis ainda. Mães imploravam para deuses sem nome pelo retorno seguro de seus filhos. Filhos desejavam adquirir a força dos pais ausentes.
A realidade de tudo a atingiu com intensidade. Então, os sons cessaram e apenas o crepitar de uma fogueira rivalizava com as respirações ofegantes.
Cassandra abriu os olhos e sentiu a dor da luz a penetrar-lhe as pupilas. Suas mãos foram amarradas com extrema habilidade e força, o que gerava a sensação de dormência. O corpo balançava em um ritmo veloz. Alguém muito grande a transportava nos ombros, indiferente ao seu sofrimento. Por instinto, a jovem mulher permaneceu calada. Em seu íntimo, algo indicava ser este o caminho para viver mais.
Ao redor, homens, mulheres e crianças clamavam por piedade, força ou coragem. Outros pediam colheitas férteis e mulheres mais férteis ainda. Mães imploravam para deuses sem nome pelo retorno seguro de seus filhos. Filhos desejavam adquirir a força dos pais ausentes.
A realidade de tudo a atingiu com intensidade. Então, os sons cessaram e apenas o crepitar de uma fogueira rivalizava com as respirações ofegantes.
Passos acelerados. Uma ordem emitida e, em segundos, um homem eleva a cabeça da mulher pelos cabelos. A dor a impede de dizer qualquer coisa e, aterrorizada, emite algo próximo ao som de choro.
Um homem magro a encara. Não há brilho em seus olhos. Não há compaixão. Sua presença ali era a prova de que os instintos de Cassandra não falharam.
Dos lábios do homem brotou um leve sorriso, tomado por um hálito tão podre quantos os poucos dentes restantes. Repentinamente ela percebe algo que amplia seu pânico: uma faca feita de pedra, tão afiada quanto a língua dos maledicentes.
Ao antever o que a aguardava, ela pôs o temor de lado e profetizou: “o sangue secará, os ossos voltarão ao pó, mas meu espírito sempre será eterno.”
A última cena registrada por seus olhos foi a do próprio corpo sem a cabeça, pendurado nos ombros do homem.
Naquele mesmo instante, os cânticos recomeçaram.
Um homem magro a encara. Não há brilho em seus olhos. Não há compaixão. Sua presença ali era a prova de que os instintos de Cassandra não falharam.
Dos lábios do homem brotou um leve sorriso, tomado por um hálito tão podre quantos os poucos dentes restantes. Repentinamente ela percebe algo que amplia seu pânico: uma faca feita de pedra, tão afiada quanto a língua dos maledicentes.
Ao antever o que a aguardava, ela pôs o temor de lado e profetizou: “o sangue secará, os ossos voltarão ao pó, mas meu espírito sempre será eterno.”
A última cena registrada por seus olhos foi a do próprio corpo sem a cabeça, pendurado nos ombros do homem.
Naquele mesmo instante, os cânticos recomeçaram.
III
A bela mulher cantava algo romântico. Paul não sabia o que dizia a música, porém teve vontade de chorar ao ouvi-la. Ela é muito bela — já citei isso? — e , sem dúvidas, jamais iria dar atenção para um derrotado. E sabe o que é pior? Eu sou muito mais desprezível que um derrotado, pois desisti do único presente que ganhei em toda a minha existência: a vida. Viver transformou-se em algo totalmente sem sentido. Não tenho um trabalho, mulher, dinheiro ou amigos. Vivo em um mundinho medíocre e insensato, rodeado por pessoas sedentas de dinheiro, nada mais.
Saí do lugar em que a cantora se apresentou e retornei para casa ouvindo o eco de suas canções.
Cheguei a meu apartamento, abri o chuveiro e aguardei a água esquentar. Fui para baixo do chuveiro e a água lava meus pecados. O frio do metal me assustou e vi, rapidamente, uma mulher sangrando pelo pescoço e, o mais estranho, sorrindo.
Saí do lugar em que a cantora se apresentou e retornei para casa ouvindo o eco de suas canções.
Cheguei a meu apartamento, abri o chuveiro e aguardei a água esquentar. Fui para baixo do chuveiro e a água lava meus pecados. O frio do metal me assustou e vi, rapidamente, uma mulher sangrando pelo pescoço e, o mais estranho, sorrindo.
Era a minha hora de morrer.
IV
Ao longo dos milênios ganhei poder, conforme descobria como manter minha essência viva.
A carne é um invólucro, um vidro que impede a perda do perfume, nada mais. O que somos, essencialmente, já foi gravado em nossas almas e, ao vivermos, apenas aprimoramos ou degradamos isso.
Demorei muito a perceber como voltaria. O processo é difícil demais, principalmente na escolha do locutor. Os seres humanos sempre temeram o desconhecido e, desde minha morte, faço parte deste panteão.
Vi mortos a vagar junto de seus entes queridos, apenas motivados pelas orações, na Roma antiga.
Deuses de inúmeras civilizações reinavam entre seus fiéis. Isto duraria até que a fé neles perdurasse e, para isto, usavam de todos os recursos para manter as preces altas e os joelhos dobrados.
O primeiro deles eu vi assim que me mataram. Minha presença não fora sentida, já que ele regozijava-se entre os membros do clã onde fui sacrificada. O deus, para quem derramaram meu sangue, foi aquele que, inadvertidamente, iluminou o caminho que eu iria trilhar.
Era o início do caos.
Demorei muito a perceber como voltaria. O processo é difícil demais, principalmente na escolha do locutor. Os seres humanos sempre temeram o desconhecido e, desde minha morte, faço parte deste panteão.
Vi mortos a vagar junto de seus entes queridos, apenas motivados pelas orações, na Roma antiga.
Deuses de inúmeras civilizações reinavam entre seus fiéis. Isto duraria até que a fé neles perdurasse e, para isto, usavam de todos os recursos para manter as preces altas e os joelhos dobrados.
O primeiro deles eu vi assim que me mataram. Minha presença não fora sentida, já que ele regozijava-se entre os membros do clã onde fui sacrificada. O deus, para quem derramaram meu sangue, foi aquele que, inadvertidamente, iluminou o caminho que eu iria trilhar.
Era o início do caos.
V
Enquanto a água caía, comecei a cantar a música da mulher do clube. Minha voz era um sussurro, tamanha a vergonha de mim.
A água corrente arrastou para os esgotos a essência má que existia. Fiz várias preces, todas pedindo por uma partida rápida e o perdão pelo que faria. Não é um jeito digno de partir, mas eu acreditava que minha permanência nada traria de bom.
Caso exista mesmo um Deus, ele sabe tudo que passei. Não é possível ninguém ter presenciado todas as humilhações e o desprezo e escárnio com que me atingiram. — Não há testemunhas a meu favor? — questionou, enquanto o vapor embaçava o espelho.
Paul olhou para baixo. Seus dedos passearam pelo fio da lâmina, criando leves filetes de sangue.
— Vou derramar isto por você. Não sou um covarde, sei que sabe, porém não há mais o que fazer. Tudo me foi negado. Se ao menos eu tivesse recebido algo e depois o perdesse, como Jó, ao menos teria a certeza de sua existência. Por que me abandonou? — inquiriu, enquanto suas lágrimas se mesclavam às águas do chuveiro.
A faca subiu quase mecanicamente ao pescoço. No espelho, uma mulher sorria, mesmo com o pescoço cortado, de onde saía sangue demais. Pensei estar em choque, ainda que não tivesse me cortado.
Forcei a lâmina e minha pele sangrou. Hesitei. Então, antes que a coragem voltasse, ouvi as doces palavras da mulher, já ao meu lado. Ela não sangrava mais e, com sutileza, impediu-me de prosseguir com o sacrifício.
— Nada disso é necessário. — disse. — Vou ajudá-lo a sair do limbo e, para isso, basta acreditar em mim.
A faca caiu de minhas mãos e seu som ecoou, mesmo com o barulho do chuveiro. Senti uma proteção indescritível me englobar e, junto com ela, o torpor de um sono calmo como jamais tive.
Era o recomeço da minha vida. Eu estava no ventre de uma deusa.
Caso exista mesmo um Deus, ele sabe tudo que passei. Não é possível ninguém ter presenciado todas as humilhações e o desprezo e escárnio com que me atingiram. — Não há testemunhas a meu favor? — questionou, enquanto o vapor embaçava o espelho.
Paul olhou para baixo. Seus dedos passearam pelo fio da lâmina, criando leves filetes de sangue.
— Vou derramar isto por você. Não sou um covarde, sei que sabe, porém não há mais o que fazer. Tudo me foi negado. Se ao menos eu tivesse recebido algo e depois o perdesse, como Jó, ao menos teria a certeza de sua existência. Por que me abandonou? — inquiriu, enquanto suas lágrimas se mesclavam às águas do chuveiro.
A faca subiu quase mecanicamente ao pescoço. No espelho, uma mulher sorria, mesmo com o pescoço cortado, de onde saía sangue demais. Pensei estar em choque, ainda que não tivesse me cortado.
Forcei a lâmina e minha pele sangrou. Hesitei. Então, antes que a coragem voltasse, ouvi as doces palavras da mulher, já ao meu lado. Ela não sangrava mais e, com sutileza, impediu-me de prosseguir com o sacrifício.
— Nada disso é necessário. — disse. — Vou ajudá-lo a sair do limbo e, para isso, basta acreditar em mim.
A faca caiu de minhas mãos e seu som ecoou, mesmo com o barulho do chuveiro. Senti uma proteção indescritível me englobar e, junto com ela, o torpor de um sono calmo como jamais tive.
Era o recomeço da minha vida. Eu estava no ventre de uma deusa.
VI
Muitos foram os homens e mulheres com quem vivi. Alguns, eu acompanhei desde a infância. Vi suas ambições se tornarem realidade. Vi sonhos virar pesadelos, e impérios se converterem em pó. Também presenciei a fraqueza sucumbir à vontade de viver, vindo a se tornar algo de incomensurável poder. Todos me deram algo em troca daquilo que lhes ofereci. Todos aceitaram minha dádiva e me doaram apenas algo essencial a seres como eu: crença. Não há um deus sem adoradores, assim como não há líder
sem comandados. Esta é uma lei imutável.
Por séculos, suguei cada sílaba, lágrima ou súplica a mim devotada. Ganhei sabedoria e poder e, em troca, auxiliei homens a mudar o destino da humanidade.
Octavianos, Temujin, Hirohito, Mao, Adolf, Lee Harvey, Lennon, Dali, Poe, Christie e tantos outros. Papas ou políticos, pessoas de bem ou não, todos ficaram sob minha influência. De suas crenças no que sou, de seus desejos e, principalmente, da cobiça latente em cada ser humano, recebi o poder de permanecer neste mundo.
Mas eles não são eternos, assim como tudo no universo. Novos fiéis deveriam ser encontrados e, tal como um parasita, partia em busca de um novo hospedeiro. Mas não basta ter ganância para me atrair. É preciso ter algo adormecido em si, algo que seja tão intrincado quanto a energia nuclear, instável, puro, letal e poderoso.
Hoje, achei o mais potencial deles.
Octavianos, Temujin, Hirohito, Mao, Adolf, Lee Harvey, Lennon, Dali, Poe, Christie e tantos outros. Papas ou políticos, pessoas de bem ou não, todos ficaram sob minha influência. De suas crenças no que sou, de seus desejos e, principalmente, da cobiça latente em cada ser humano, recebi o poder de permanecer neste mundo.
Mas eles não são eternos, assim como tudo no universo. Novos fiéis deveriam ser encontrados e, tal como um parasita, partia em busca de um novo hospedeiro. Mas não basta ter ganância para me atrair. É preciso ter algo adormecido em si, algo que seja tão intrincado quanto a energia nuclear, instável, puro, letal e poderoso.
Hoje, achei o mais potencial deles.
VII
Cada pessoa da qual me aproximei tinha, em sua alma, a orça de um grande oceano. Uns eram maléficos, outros não. Nunca me importei com esses detalhes. Aprendi que a essência humana só é preservada com o equilíbrio entre os bons e os maus, pois as aparências apenas servem para disfarçar esta dualidade.
Paul era um enigma muito complexo. Seus traumas o inibiam, suas fobias o impediam de crescer e a imagem que ele via refletida no espelho o incomodava a ponto de buscar o fim da sua vida. Era perfeito em todos os detalhes. Suas fraquezas seriam convertidas em meu poder. Por um período longo, ficarei isenta do cansaço de buscar alguém.
VIII
Não sei se estou delirando. Tenho certeza absoluta de não ter usado qualquer tipo de droga e, mesmo assim, continuo com a sensação de torpor. Estou ficando louco? Claro que sim, pois, segundos atrás, tentei ceifar minha vida. Isto é o mais doentio tipo de loucura.
A água continua a escorrer por meu corpo. Ela está quente e me acalma. Não sinto mais vontade de partir. Não sinto o medo de olhar nos olhos dos outros. Flui em mim a força de quem esteve preso por milênios e, repentinamente, foi libertado. Quero gritar até que as cordas vocais sangrem. Todos me ouvirão, acreditem. Todos.
A água continua a escorrer por meu corpo. Ela está quente e me acalma. Não sinto mais vontade de partir. Não sinto o medo de olhar nos olhos dos outros. Flui em mim a força de quem esteve preso por milênios e, repentinamente, foi libertado. Quero gritar até que as cordas vocais sangrem. Todos me ouvirão, acreditem. Todos.
IX
Ele é realmente perfeito. Um poço seco, aparentemente, mas com um grande lençol pouco abaixo dele. Bastou cavar. Bastou ter as ferramentas corretas e agora não preciso me preocupar com o deserto que me cerca.
Paul abriu sua mente e seu coração para mim. Vi um passado pleno de tristeza, desprezo e intimidação. Não há como um homem crescer sem complexos, após tantas agruras. Contudo, os que construíram estas barreiras não contavam com um fator: a argamassa e as pedras não são indestrutíveis. Com paciência, toda muralha cai. A história ensinou isto de diversas formas.
Com calma, alcancei o âmago de meu novo companheiro. Ele é belo, me surpreendendo. Há uma existência mantida em sigilo no interior do coração. Com um leve sussurro, começo a mesclar nossas essências. Ele nasceu pronto para ser meu escriba, meu confessor, companheiro e amante. O destino me sorriu: encontrei a parte capaz de completar minha alma. Em breve todos ouvirão nossas histórias. Em breve escreveremos novas histórias, já que o caos nos uniu para gerarmos algo grandioso. Ouça meu clamor, homem das palavras. Liberte-se dos grilhões da tirania do mundo moderno e lance-se comigo no abismo das incertezas. Juntos, nossas vozes serão levadas a todos os cantos do mundo.
X
Os caminhos que segui foram intrincados. Desde minha morte, o que ditou a continuidade da minha existência foi a persistência, alimentada pelo ódio.
Meu corpo jorrava sangue enquanto era carregado como um pedaço de carne podre, sem qualquer respeito. Eu vi tudo aquilo com um misto de incredulidade e raiva. Os humanos não estavam totalmente errados, pois, para eles, era normal sacrificar. Em seus corações, aquilo era a única forma de deter as desgraças.
O que não aceitei era ver aquela entidade bebendo da crença e nada oferecendo em troca. Todas as coisas boas e ruins eram fruto direto de fenômenos climáticos, acaso ou reflexo da índole do homem. Se há um deus capaz de mandar ou influenciar nisso, honestamente, ainda não o conheci.
O que não aceitei era ver aquela entidade bebendo da crença e nada oferecendo em troca. Todas as coisas boas e ruins eram fruto direto de fenômenos climáticos, acaso ou reflexo da índole do homem. Se há um deus capaz de mandar ou influenciar nisso, honestamente, ainda não o conheci.
XI
Eu fui um homem à mercê de meus próprios temores. Tudo aquilo que um dia eu poderia ser, foi enclausurado pelo medo.
A pior perda aconteceu exatamente no dia de meu aniversário de quatorze anos, quando, durante as aulas, escrevia uma história sobre um jovem que vencia seus perseguidores pela influência das palavras.
Meu texto foi tomado de mim e não reagi. Dois moleques o leram, mudando tudo, humilhando-me muito mais. Até hoje ouço as risadas. Até hoje nada saiu de minhas mãos e mente.
Até hoje…
Meu texto foi tomado de mim e não reagi. Dois moleques o leram, mudando tudo, humilhando-me muito mais. Até hoje ouço as risadas. Até hoje nada saiu de minhas mãos e mente.
Até hoje…
XII
Já tive outros escritores como parceiros. Edgard foi um dos mais promissores, porém sua mente não resistiu por muito tempo ao mundo ao qual foi apresentado.
Uma coisa deve ser deixada clara: não sou um parasita. Ao contrário, desperto o que há de mais promissor naqueles cuja alma me uno. De seus legados, tiro a “vitae” para continuar minha senda. Alcunhas recebi, exorcizada fui e, ainda assim, continuo a vagar no mundo dos vivos.
Hoje, completei oito anos de ligação a Paul. Ele se saiu bem melhor do que imaginei e, atualmente, seus livros só perdem em repercussão à história do Cristo e à loucura de meu falecido guerreiro austríaco, cujo ego acabou por findar nossa simbiose.
Estou ao lado de meu pupilo. Ele já pode me ver e eu também vejo suas novas ambições. Pobre homem, castigado por ser diferente, excluído por não se encaixar no que é considerado normal. Nossas obras lhe trouxeram poder, pois o dinheiro é sinônimo de influência e ele possui o suficiente para abrir sorrisos, caminhos e pernas. Toda mulher cobiçada vira uma meta. Não há esforço ou recurso grande o suficiente para impedi-lo de alcançar o que deseja. Que ele siga com suas caçadas, uma vez que mantenha minha fonte de energia por intermédio dos livros.
Assim, mais uma década de prazeres e cooperação se passou.
Assim, mais uma década de prazeres e cooperação se passou.
XIII
O escritor teve tudo o que desejou. Comprou corpos, almas e até o amor. Sua fortuna cresceu e seu apetite por tudo o que nunca teve não era saciada, apenas amenizada. Foram anos agradáveis em que usou de seus recursos para humilhar e arruinar os que lhe fizeram mal. Eles sofreram e continuaram vivos para sempre lembrar quem lhes trouxe a derrocada. A vingança foi doce, mas durou bem menos do que esperou.
Mulheres das mais lindas e sensuais foram seus brinquedos. E, como toda criança, um dia ele as colocou de lado. Com o tempo, Cassandra se tornou sua maior cobiça. Mas como conquistar o amor de alguém que é superior ao tempo? Como unir um corpo a um espírito? Não havia respostas a essas questões, apesar de suas ambições andarem lado a lado, porém nada entre os dois mundos iria impedi-lo de desvendar essa charada.
XIV
Passo ao lado de seres antes considerados divinos. Criaturas etéreas oriundas do Egito antigo, África, tribos sul-americanas, Oceania, China, Japão, países nórdicos, dos pólos, das grandes metrópoles – estes são os de existência mais curta — e outras localidades deste pequeno planeta.
Essas antigas forças já não podem mais influenciar. Os que neles acreditaram feneceram no tempo. Eu corri este risco e, com muita astúcia, sobrepujei as armadilhas que os séculos nos propõem. Tornei-me uma candidata á real eternidade. Falta muito pouco para conquistar essa dádiva. Muito pouco.
XV
Finalmente chegou o momento que mais temi. Era a hora de desfazer nosso acordo de cooperação. Meu escriba já havia caído em desuso, como tudo nesse mundo de consumismo desenfreado, de informações e modismos, e nossos livros perderam grande parcela de influência. Eu não poderia me dar ao luxo de ficar com ele, faltando tão pouco para conseguir a eternidade.
Percebi, anos atrás, que o comportamento dele mudou. Os prazeres de outrora já não lhe importavam. Algo em mim despertou um sentimento real na alma daquele mortal e, infelizmente, não poderia ceder a isso. Cedo ou tarde ele morrerá e, como todos que conheci, apenas suas obras ficarão. A alma humana é muito volátil e se desprende desse plano com muita rapidez. Eu, ao contrário, estou próxima de alcançar o inimaginável.
O amor é belo, contudo não será suficiente para impedir-me de alcançar meus objetivos. E eles estão tão próximos.
O amor é belo, contudo não será suficiente para impedir-me de alcançar meus objetivos. E eles estão tão próximos.
XVI
Nunca fui cego. Nunca deixei de perceber o desprezo com que me olhavam. Porque seria diferente agora? Cassandra não valoriza o que posso lhe dar. Ela não se importa com meus sentimentos e irá partir. Ela confidenciou a mim suas ambições. Não a culpo por isso. Séculos de solidão só podem ser minimizados pelo poder.
Tudo o que pude fazer em prol de sua busca eu fiz. Meus livros perderam gradualmente a influência, sendo postos de lado em troca de vídeos, podcasts, videologs, livros digitais e aparelhos cada vez mais dotados de recursos. A era do consumismo estava em desenfreado avanço. Tudo perde o sentido de um dia para o outro. Calamidades são esquecidas segundos após acontecerem. Um novo celular é suficiente para tirar a atenção sobre o que acontece nesta esfera imunda.
Minha musa disse que faltava pouco para ela chegar ao ápice do poder. Pequenas parcelas dos legados de seus antigos parceiros foram acumulando em sua essência e, em breve, ela poderia dispensar definitivamente esse tipo de troca.
O que, entretanto, atrapalhava era que a cada dia ficava mais difícil conseguir notoriedade em um mundo disperso pelo excesso de informações, benefícios e tecnologia.
Só um ato de grande destaque lhe daria a parcela final de poder para ascender ao patamar de uma Eterna e eu lhe daria este presente. Era o começo da eternidade para ela e o começo de minha própria morte.
O que, entretanto, atrapalhava era que a cada dia ficava mais difícil conseguir notoriedade em um mundo disperso pelo excesso de informações, benefícios e tecnologia.
Só um ato de grande destaque lhe daria a parcela final de poder para ascender ao patamar de uma Eterna e eu lhe daria este presente. Era o começo da eternidade para ela e o começo de minha própria morte.
XVII
Ele fez tudo da forma certa. Sua áurea ficou escondida de mim, à base de magia. Muitas pessoas foram envolvidas nesta trama. Muitas pessoas foram escondidas com o uso de sua fortuna. O dinheiro gerou uma complexa rede de colaboradores e, enfim, Paul conseguiu seu intento.
Senti o exato momento em que sua alma partiu. A dor foi grande, pois ele se vinculou a mim pelo amor, algo desconhecido até então por mim.
Fui até o local do ritual. O choque de vê-lo naquele estado me abalou, outra sensação esquecida há tempos. Seu corpo foi desmontado e exposto metodicamente. A aura de sofrimento estava impregnada em tudo. Alguém o desossou cirurgicamente, sem a menor piedade. Em todas as paredes do apartamento, meu nome estava escrito em sangue.
E o pior de tudo: ele foi o mandante de sua própria morte. Ele ordenou que o esquartejassem para mostrar ao mundo seu amor por mim.
Um vídeo foi espalhado pela internet de forma viral. A curiosidade mórbida dos homens por cenas daquele porte lhe deu a notoriedade necessária e, assim, a lenda de Cassandra ganhou fama. Paul, por meio de seu flagelo, deu a última parcela de poder necessária para eu alcançar a imortalidade.
Jamais esqueci seu ato. Ele seria recompensado de alguma forma.
XVIII
Uma alma é algo imortal. Eu fui uma alma e reneguei a imortalidade que lhe é devida. Ser eterno sem um propósito não me atraía.
Eu sou uma divindade, agora. Paul fez um sacrifício por amor a algo incompreendido. Muitos questionaram seu ato, muitos comentaram, muitos fizeram preces por seu espírito e, em muitos, esta história estará sempre viva. Isso me deu o que faltava para
ascender ao panteão dos Eternos. Agora, uma nova busca se iniciava.
O sofrimento de meu antigo companheiro era a prova derradeira do que ele sentia por mim. Sua morte deveria ser um ponto final à sua existência, mas morrer por amor é algo que poucos fizeram. Qualquer um que faça algo dessa magnitude não passa incólume.
Muitos anos se passaram e, em um sombrio dia, encontrei a essência, a alma de Paul. Ele não partiu. Ele ainda estava vinculado ao seu amor não correspondido. Chegara a hora de retribuir tudo o que fez a meu favor, colocando para sempre ao meu lado, como meu único amor.
Eu sou uma divindade, agora. Paul fez um sacrifício por amor a algo incompreendido. Muitos questionaram seu ato, muitos comentaram, muitos fizeram preces por seu espírito e, em muitos, esta história estará sempre viva. Isso me deu o que faltava para
ascender ao panteão dos Eternos. Agora, uma nova busca se iniciava.
O sofrimento de meu antigo companheiro era a prova derradeira do que ele sentia por mim. Sua morte deveria ser um ponto final à sua existência, mas morrer por amor é algo que poucos fizeram. Qualquer um que faça algo dessa magnitude não passa incólume.
Muitos anos se passaram e, em um sombrio dia, encontrei a essência, a alma de Paul. Ele não partiu. Ele ainda estava vinculado ao seu amor não correspondido. Chegara a hora de retribuir tudo o que fez a meu favor, colocando para sempre ao meu lado, como meu único amor.
XIX
Não entendo o que está acontecendo. Eu sempre tive grande dificuldade em pôr as palavras no papel. Agora, entretanto, uma história passa diante de meus olhos, e minhas mãos não param de escrever. Já estou a quase seis horas trabalhando sem parar e não sei quando tudo irá terminar, mas não tenho pressa. Este é um momento sublime e vou saboreá-lo até o fim.
Muitas horas mais transcorreram. Meus dedos doem e há pequenos sangramentos, o que não me incomoda. À minha frente vejo o trabalho definitivo de um escritor. Uma história de amor diferente, eterna e sinistra.
Os detalhes me deixam curioso. Há citações de lugares e épocas que não conheci e, entretanto, existem, todos detalhadamente transcritos. Nunca acreditei em espíritos, mas vou abrir uma exceção dessa vez.
XX
Paul me conta detalhes de sua jornada pelo mundo dos mortos. Ele sofreu torturas por parte de espíritos obsessores, homens presos a seus amores mundanos, às suas paixões materiais e desejosos de continuar entre os vivos. Ele relata, com tristeza, seu encontro com o jovem que encontrou seus restos mortais e a destruição de sua mente. Uma perda que foi gravada no espírito de Paul, já que ele nunca teve a intenção de destruir alguém, além de si próprio.
XXI
Fui até um hospício, uma casa para tratamento de doentes mentais, em busca de pistas sobre o que realmente estava ocorrendo. Aquela história poderia ser apenas fruto de minha imaginação, mas antes de acreditar nisso, era necessário averiguar as informações que recebi.
Cheguei à recepção e citei o nome do jovem. Foram segundos de espera longos e nervosos. A única coisa que eu queria ouvir era que ele não existia.
Então, com um leve menear de cabeça, a atendente confirmou que o bombeiro estava realmente internado naquele lugar.
Por pouco não permaneci ao lado dele.
XXII
Meu objetivo foi atingido. O romance sobre minha história com Paul foi publicado. Sucesso imediato.
Do fruto disso, o espírito de meu companheiro ganhou mais substância. Ele ainda era um bebê, perto do que hoje sou, porém estava no bom caminho. Comigo, em apenas alguns séculos ele iria se tornar uma divindade, usando de todos os recursos possíveis.
Comigo, sua história iria se perpetuar pelas gerações vindouras e, um dia, iremos enfim selar a união do sangue e do espírito. O tempo provaria que, mesmo separados, sempre fomos um só.
Obrigado a todos que prestigiaram meu trabalho ao ler este conto.