Comemoração dos 80 anos dos Demônios da Garoa em Porto Alegre

Recentemente uma leva de bandas andam comemorando 40 anos de carreira, alguns artistas mais veteranos 60 anos, mas existe um grupo de samba no Brasil, que em 2023, está completando a marca de 80 anos de carreira. Sim, 80 anos de serviços prestados ao samba, à alegria e à música popular do Brasil. Falo, é claro, dos Demônios da Garoa, a rapaziada que através das músicas de Adoniran Barbosa, e uma luz divina própria, provou que São Paulo era longe do túmulo do samba batizado por Vinícius de Moraes. E essas oito décadas são registradas até no Guinness Book. Com a banda na ativa, o negócio é comemorar, e domingo passado os Demônios aterrissaram no Araújo Vianna, em Porto Alegre, para mostrar que só melhoram com o tempo e apresentaram um dos shows mais bonitos, animados e inesquecíveis do ano na capital dos gaúchos. E não uma garoa caía na cidade, e sim uma bela chuvarada, e o NoSet, como gosta é de música boa, não ia perder essa e os próximos parágrafos contam como foi esse show histórico.

Com um  público pequeno, mas animado e uma faixa etária digamos, mais madura e extremamente animada, o grupo entrou no palco por volta das 20h15min. Com uma banda de apoio azeitada, com bateria, baixo, cavaco, surdo, tamborim, tantan e sopros, os quatro integrantes oficiais Sérgio Rosa, Dedé Paraízo, Ricardo Rosa e Everson Pessoa, com uma simpatia e elegância de sempre começam o show com uma citação ao clássico Trem das Onze à capela, para logo emendar o sucesso Tiro ao Álvaro. Com um som impecável e vozes incríveis, já fazem um medley de Aquarela do Brasil com A Voz do Morro, de Zé Ketti, no melhor estilo samba exportação, com muito balanço, voz e suingue. Pausa no samba para lembrar que a banda conheceu Adoniran Barbosa quando fez a trilha para o filme O Cangaceiro, de Lima Barreto, em 1949, começou a vitoriosa parceria e mostrando a versatilidade da banda, cantam o xote Mulher Rendeira, trilha do filme. Continuando pela viagem pelo Brasil, seguem com De Volta Pro Aconchego, de Dominguinhos e Nando Cordel. Seguem com Você Abusou, samba de Antônio Carlos e Jocafi. Todas com divinos arranjos vocais e destaque a simpatia de todos os integrantes, que conversam com o povo, brincam e estão ali para mostrar a sua viagem musical para a plateia.

Iracema, clássico melancólico de Adoniran, segue o baile, mas é com Naquela Mesa que a emoção bate na plateia, com um arranjo vocal emocionante da canção de Sérgio Bittencourt. Com Apaga o Fogo Mané, mais uma do mestre Adoniran, a alegria volta e com uma sensibilidade única, a banda homenageia um dos maiores compositores do Rio Grande do Sul, o imortal Lupicínio Rodrigues, lembrado com uma linda versão de Felicidade. Prova de Carinho (aquela da corda mi do cavaquinho), seguida de Kid Cavaquinho, é o momento do cavaquinista mostrar seu valor, solando, esmerilhando o instrumento e com direito a solo de brasileirinho. Um espetáculo e tanto.

Segue com a romântica Seu Querer, canção mais recente da banda e uma homenagem a Jorge Aragão e à turma do Cacique de Ramos com a belíssima Lucidez. Lembrando que tudo é executado impecavelmente, com vozes sensacionais, som na medida e samba de primeira. Um privilégio prestigiar os Demônios. Com Samba do Arnesto a plateia se assanha de novo com destaque a Sérgio Rosa, filho do fundador da banda Arnaldo Rosa, imitando o bilhete do Arnesto. Muita vitalidade, voz e simpatia de Sérgio, cantando muito, dançando e tocando seu afoxé, marca registrada do músico. Segue uma homenagem a Fagner com Canteiros, em mais uma prova da versatilidade da banda, que toca o que vier pela frente se for música boa. Aí depois temos o medley luminoso com A Luz da Light e As Mariposas, no melhor que o samba paulista produziu entre os Demônios e Adoniran. Levanta, Sacode a Poeira é tocada também em mais uma homenagem ao samba paulista, composição histórica de Paulo Vanzolini.

Chega o momento que Ricardo Rosa, pandeirista, filho do Sérgio  e neto do Seu Arnaldo, anuncia que tem música nova e a banda canta a otimista É Preciso Seguir, com direito a repetição de refrão pra ficar na boca do povo. Depois a viagem musical para na Bahia, com homenagem ao Dorival Caymmi, com O Que Que a Baiana Tem, Samba da Minha Gente e Maracangalha, pot-pourri de responsa em homenagem ao genial baiano.

Com o primeiro trecho de Disparada, à capela, o grupo emendou mais um medley e homenagem, dessa vez ao incomparável Jair Rodrigues, com dois clássicos do samba de São Paulo, Triste Madrugada e Tristeza, com a plateia indo ao delírio e cantando os famosos la la ias das canções e findando com o seminal rap do velho Jair, Deixa Isso Pra Lá, com  performance de mãozinhas do quarteto. Saudosa Maloca, mais um clássico inesquecível da dobradinha com Adoniran, é entoada e emociona a plateia. Depois vem um samba rock e o conjunto mostra que não tem ruim, com a qualidade da banda fazem um balanço contagiante que faz a plateia levantar aos poucos ao suingue dos Demônios.

Então chega o momento de Everson Pessoa. Demônio mais recente do grupo, com vasta experiência em rodas de samba da periferia de São Paulo, participação como violão de sete cordas do Quinteto em Preto e Branco e tendo viajado muitas tours e gravado com a madrinha Beth Carvalho, ele puxa uma interpretação marcante de Andança, famosa na voz de Beth, com um alcance de voz incrível e mais um show do coro da banda. Não Deixe o Samba Morrer, samba icônico na voz de Alcione, é puxada por Dedé Paraizo, outra lenda, compositor de primeira, e toca um violão de sete cordas com aqueles bordões inesquecíveis, em mais um show de interpretação vocal . Aí, quando achamos que o show ia chegar ao fim, vem aquele momento carnaval, com a banda enfileirando marchinhas carnavalescas, com a plateia de pé, pulando, fazendo trenzinho, transformando o Araújo num carnaval de setembro. Ainda tocam A Grande Família, canção de Dudu Nobre que gravaram com Zeca Pagodinho, que tem todos os cas cas cais característicos do grupo.

Mas é claro que Demônios sem o Trem das Onze, o contratante não paga o cachê, a galera vaia e a banda tem que sair de camburão, e logicamente, a banda toca esse hino de 1965, canção que transformou o grupo e os olhos do samba passaram a se voltar pra São Paulo. Momento antológico no coração da Redenção em Porto Alegre e isso que ainda eram apenas 22h10min. E com o público de pé em euforia ainda tem tempo para mais um medley animadaço com quilates do naipe de Isto Aqui, o Que É?, Aquarela Brasileira, de Silas de Oliveira, Madalena Madalena, Mulher Brasileira, Deixa a Vida Me Levar, entre outros, fazendo o Araújo num salão de baile dos mais animados. Na apresentação da banda, conhecemos os incríveis músicos de apoio e vemos um show dos quatro integrantes principais, esbanjando samba no pé, miudinho e muito ziriguidum, com destaque para Everton Pessoa, em um êxtase incrível, mas Sergião Rosa mostrando que também tem muito samba no pé. Ainda tem mais carnaval com Vou Pedir Pra Você Voltar, do Tim Maia, e uma surpresa da banda ao tocar o clássico Querência Amada, do Teixeirinha (Deus é gaúcho) numa rara sensibilidade de artistas com plateia. Gratidão e improviso, com direito a gritos como “ah, eu sou gaúcho” e tudo, findando um show nota 10 e inesquecível.

Os 80 anos dos Demônios da Garoa, além de um marco histórico é a concretização de uma grife, uma marca, um grupo que consegue agradar a qualquer vivente que goste de samba ou não, a simpatia e talento deles não se limita a um grupo de samba, é uma família talentosa, com um repertório divino que honra as raízes do samba e viaja pela riqueza da música nacional com qualidade intocável. Saímos com sorriso no rosto, de alma lavada e felizes de presenciar um grupo tão rico musicalmente e até a chuva que caía forte sobre Porto Alegre parecia uma garoa de tanta alegria e alma lavada de ver os mestres e poder contar aqui essa gigante experiência.

 

Crédito das fotos: Vívian Carravetta

Mais do NoSet