Doutor Sono (Doctor Sleep): muito mais do que a continuação de O Iluminado.

Você pode até não gostar de Stephen King, mas uma coisa você precisa aceitar: ele escreve com muita qualidade. Quando um diretor competente pega uma obra do autor, certamente o resultado é magnífico. Quer alguns exemplos? O Nevoeiro, Carrie – A Estranha, It – A Coisa, Conta Comigo, À Espera de um Milagre, O Sobrevivente, Louca Obsessão, Um Sonho de Liberdade, O Iluminado e, agora, Doutor Sono. Sim, amigos leitores, Doutor Sono é uma ótima adaptação de um livro de Stephen King e também uma sequência à altura da obra de 1980, O Iluminado.

Provavelmente você sabe que esse filme é continuação direta do filme O Iluminado, lançado em 1980 e dirigido por Stanley Kubrick. Caso ainda não tenha visto ou quer se lembrar do que ocorre nessa obra, basta clicar no link e mergulhar nas nuances do primeiro longa.

Sim, antes que prossigam, este post contém alguns spoilers. Quer persistir? Então, tome um whisky com Jack Torrance antes…

Alguns pontos dessa primeira obra estão presentes. A principal delas é a presença de Danny Torrance (Ewan McGregor) e de Dick Hallorann (Carl Lumbly), mas é possível ver cenas com a mãe de Danny e também elementos sobrenaturais ainda latentes do Hotel Overlook. Também é possível ver reconstituições quase perfeitas de cenas do filme de Kubrick. Aliás, o primeiro filme não agradou King, sobretudo pelo final. Em contrapartida, King autorizou a gravação da sequência baseada naquilo que foi visto no filme de 1980.

                                                                                       Dick Hallorann e seus intérpretes: Scatman Crothers (1980) e Carl Lumbly (2019).

Para evitar aumento de despesas e as possíveis falhas quando o CGI entra em cena, o diretor Mike Flanagan optou por escolher um elenco visualmente similar aos dos atores da década, fato que tornou a filmagem mais fluida. Algumas cenas são surpreendentemente iguais ao do filme original e eu pude ouvir alguns questionamentos de espectadores que não sabiam se o garoto era um CGI do Danny de 1980 ou um ator. O fato é que não houve a escolha de um elenco idêntico ao do filme original, apenas pessoas parecidas e capazes de trazer à tona as memórias obtidas graças a O Iluminado.

A Trama.

O longa retrata as consequências dos fatos ocorridos em O Iluminado, sobretudo o futuro de Danny Torrance. Entretanto, o que poderia ser um futuro calmo acaba por por se revelar algo muito mais grandioso do que pensávamos. Tal como dito no primeiro filme por Dick Hallorann, há muitos outros “Iluminados” pelo mundo, assim como muitos caçadores que se alimentam da energia destas pessoas.

No mesmo ano em que Danny e sua mãe foram atormentados no hotel Overlook, encontramos na Flórida um grupo estranho e poderoso intitulado o ” Verdadeiro Nó”. A líder deles, Rose – A Cartola (Rebecca Ferguson), é uma mulher de imenso poder e que habita há muito tempo a Terra. Eles são letais e necessitam da energia vital dos Iluminados. A primeira aparição deles é assombrosa e mostra uma malignidade à altura de alguns dos pesadelos já criados por Stephen King.

Eles são vampiros que vagam no mundo há séculos e precisam caçar para sobreviver. Danny não sabe, mas ele é um provável alvo que só permanece a salvo por causa da proteção e dos ensinamentos de Hallorann, fato comprovado em uma das cenas iniciais em que o menino confronta novamente a velha da banheira.

https://noset.com.br/cinema/o-iluminado-1980-o-medo-criado-por-king-e-revisto-por-kubrick/

A história deixa bem claro que o Overlook é uma espécie de vampiro que, assim como os componentes do “Nó”, se alimenta da energia dos Iluminados. Por sua vez, o Nó Verdadeiro dá preferência a caçar crianças, seja por sua inocência ou por serem alvos mais fáceis, assim como o hotel tentou ao buscar a morte de Danny.

Recrutamento.

O desenrolar da narrativa nos apresenta a duas novas peças no frágil equilíbrio entre as forças do bem e do mal. A primeira delas é a jovem Abra Stone (Kyliegh Curran), uma menina cuja iluminação é fortíssima. Do outro lado, Rose e o Pai Corvo (Zahn McClarnon) recrutam uma nova peça para seu Ka-tet, a bela, jovem e cruel Andi Cascavel (Emily Alyn Lind).

É na “iniciação” de Andi que percebemos com mais clareza que King realmente criou personagens com detalhes semelhantes aos vampiros, incluindo o fato de terem que morrer para se tornarem os parasitas imortais.

O tempo passa e reencontramos Danny (agora apenas Dan) em uma situação lamentável, entregue ao alcoolismo e vivendo como um errante. Apesar de sua condição triste, Dan é ajudado por Billy Freeman (Cliff Curtis), um homem que consegue ver nele algo bom. Aos poucos os fantasmas pessoais dele são esquecidos e sua vida volta aos trilhos. Junto com Billy, Dan realiza obras na comunidade e trabalha em uma espécie de clínica de repouso para idosos, onde – agora mais forte por ter abandonado o alcoolismo – usa seus poderes para conceder uma partida mais serena aos que irão morrer. O curioso nesta parte é que Dan descobre quais pessoas morrerão por causa de um gato que se deita aos pés deles.

Ao trazer dignidade e uma partida confortável, Dan é chamado por aqueles que ele ajuda de Doutor Sono.

O passado que persegue.

O uso de bebidas alcoólicas é reflexo do passado do próprio pai de Dan. Também é reflexo dos anos em que foi perseguido pelos que serviam ao hotel Overlook, já que o lugar amaldiçoado jamais desistiu de sorver a essência de Danny. Isso só foi sobrepujado com a ajuda de Hallorann que ensinou um pequeno “truque” ao seu protegido. O uso de bebidas foi o responsável pela diminuição do poder de Dan, mas foi vital para que o Nó Verdadeiro não o enxergasse ao longo dos anos, fato devido também ao envelhecimento.

E como estamos falando de passado, não posso deixar de destacar a forma como Dan se livrou dos monstros do Overlook: ele os prendeu junto a ele, silenciando-os, mas tendo-os em si para todo o sempre. Esse “truque” foi uma cortesia de Dick Hallorann.

Apesar da loucura do pai e dos traumas que o atormentaram por longos anos, Dan Torrence sabe que seu pai foi influenciado pelos males do Overlook. No fundo, ele não nutre raiva ou desprezo pelo pai. Ao se tornar o Doutor Sono, Dan comprova que o passado dos pais não é uma sentença para seus filhos.

Revelações.

Aos espectadores mais atentos e acostumados às obras de Stephen King, boas revelações estão presentes neste filme e que compravam a interligação das tramas por ele criadas:

a) Tony, o “amigo imaginário” de Danny é a manifestação de sua iluminação;

b) Podemos ver uma cena onde se destaca um trenzinho em New Hampshire. A única coisa que veio à minha mente foi o maligno Charlie Choo-Choo, presente na série A Torre Negra;

c) O Ka é citado por Hallorann. Ka é como é denominada a força-motriz por trás da existência dos mundos e está presente também em todos os livros da série A Torre Negra.

d) A presença de seres tão poderosos reforça a máxima de que os livros de King estão interligados, formando um gigantesco universo com realidades das mais variadas;

e) O local onde Trevor, uma das vítimas do Nó Verdadeiro é enterrada, é um terreno das indústrias LaMerk, empresa vinculada ao Rei Rubro;

f) Danny chega até a cidade onde encontrará a melhora de seu vício. O veículo que o leva pertence à Corporação Tet, a antagonista da LaMerk, o que mostra o equilíbrio na balança da luta do bem contra o mal; e

g) Os números 217 (número usado para marcar o quarto no livro, o local onde aparece a velha da banheira), 237 (usado por Kubrick no filme, atendendo um pedido dos donos do hotel) e 1980 (ano de produção do primeiro filme) estão presentes. 1980 é o número da casa onde mora Abra.

Duelo de poderes.

Um dos lados da já citada balança possui uma criatura ancestral e de imenso poder, a maligna Rose, A Cartola. Mas o Ka exige equilíbrio e é nesse momento que entra Abra Stone, uma jovem com poderes capazes de intimidar todos os integrantes da trupe de Rose. Mas não se deixem enganar… Rose é ardilosa e não recuará por qualquer coisa.

O fim.

O palco para o confronto final é um velho conhecido nosso. Lá, Dan e Abra travarão a luta de suas vidas contra pesadelos com os quais sequer sonhavam há pouco. Esta parte da obra é plena de referências a O Iluminado e mostra o apuro da direção e da produção para trazer algo convincente para o público novo e o antigo.

Algumas das cenas já são clássicas só pela forma como foram elaboradas, incluindo o confronto de Rose com Dan e Abra, além do encontro fantástico de Dan com seu falecido pai, Jack Torrance.

Mas há muito mais a ser explorado em Doutor Sono. Por isso, caso você goste de uma trama bem elaborada, de uma adaptação feita de forma competente e de drama, suspense e terror mesclados em uma mesma obra, este é o filme para você assistir.

 

 

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