Crítica – Um Garoto Como Jake (Silas Howard) e o tema de crianças transgênero tratado com esperança.

Em certo momento de deste filme, um personagem casualmente questiona alguns pontos da trama de Cinderela (1950), clássico da Disney sobre a garota maltratada pela madrasta e que deseja se tornar uma princesa e ser resgatada por um príncipe. Reflexões que pareciam nem sequer serem cogitadas há mais de 60 anos, hoje são mais do que pertinentes diante das inevitáveis mudanças na sociedade (por mais que sempre existam os que insistem em resistir…). O arquétipo da princesa indefesa cujas motivações giram em torno de uma salvação masculina se fortaleceu muito no campo das animações, principalmente naquelas da Era de Ouro da Disney. A imagem da fantasia de vestido, varinha e sapatinhos de cristal se tornou um modelo regular para colocar as meninas em um canto específico do comportamento social. É o que se espera delas. Ou ao menos… o que se esperava.

Não à toa, as citações ao clássico (dentre outros mais) são uma maneira recorrente de versar sobre o tema principal deste novo trabalho de Silas Howard: questionar a forma como a sociedade contribui para construir a noção de gênero e como as fragilidades dessa ideia surgem diante de comportamentos naturais (no caso aqui, em crianças) de auto identificação. Já tendo alguma experiência com o tema em obras anteriores – dirigiu um documentário sobre transgêneros (More Than T, 2017), além de 3 episódios da bela série Transparent (2014 – 2017) –, o diretor volta a abordar o assunto em Um Garoto Como Jake, adaptado por Daniel Pearle de sua própria peça homônima.

O filme conta a história de Alex (Claire Danes) e Greg (Jim Parsons), pais de Jake (Leo James Davis), que, aos 4 anos de idade, começa a intensificar um comportamento que preocupa a dupla, revelando uma predileção por roupas e brincadeiras mais comuns às meninas. Quando chega a época dos processos de admissão para bolas escolares particulares em Nova York, a diretora da pré-escola do garoto, Judy (Octavia Spencer), tenta ajudar Alex e Greg a como descrever a imagem do próprio filho como forma de conseguir as vagas nas melhores escolas da região. Ao notar a maneira como as outras pessoas reagem ao comportamento do filho, eles percebem que suas vidas (e a de Jake) nunca mais serão as mesmas.

Deixando de lado a pretensão de abordar o tema a partir de uma esfera mais ampla e social, o bom roteiro de Pearle foca mais no pessoal, mais precisamente nos conflitos do pais, mostrando como a iminência de colocar o filho em contato com diversas crianças (e as consequências advindas) afeta suas vidas pessoais, profissionais e a solidez dos valores que julgavam ter antes de enfrentarem a situações por inteiro. Talvez o grande mérito do texto seja justamente investir tempo para dar dimensão aos personagens de Alex e Greg, tornando seus questionamentos, decisões e defeitos mais reais. Afinal, qualquer um que passasse pela mesma situação teria inevitavelmente seus conceitos pré-concebidos confrontados, mesmo para aqueles que se julgam mais preparados.

E aqui é importante constatar que o cineasta trata o assunto com leveza, ainda mais considerando outras obras e a própria situação no nosso mundo real. O ambiente de seu filme é limitado a um núcleo que, tenho certeza, se classificaria como progressista. Mas é justamente nesse meio onde os preconceitos aparecem em reações involuntárias e em discussões supostamente acadêmicas e cultas. Sim, existe todo uma parcela da sociedade que nem sequer concebe as ideias apresentadas aqui – e para eles não há muito com o que argumentar –, mas há outra parte que frequentemente demonstra a mesma coisa, mesmo que que através de intenções diversas. Assim, um personagem comenta que “meu irmão gostava de brincar de princesa quando era criança, mas hoje está tudo bem e ele é um atleta de 1,90m de altura. Vai ficar tudo bem…” não percebendo o preconceito da própria conclusão. São situações veladas e comportamentos moldados para se encaixarem numa necessidade de aceitação – boa quando acontece, mas ruim quando disfarçada.

Embora o filme não apresente necessariamente uma resposta sobre Jake, o que acontece é que ele se encaixa no caso de pessoas que não conseguem alinhar sua identidade de gênero ao sexo que lhes foi atribuído. Isso não acontece só com adultos, para esclarecer. Do contrário, o autoconhecimento e identificação sobre gênero acontece cedo e há um número grande de crianças que passam pelo processo. Ele nasceu com o sexo masculino, mas se identifica como uma menina – sendo importante salientar que identidade de gênero, sexo e orientação sexual são coisas distintas –, portanto, passa a se sentir confortável vendo filmes clássicos das princesas da Disney, usando vestidos em festas à fantasia e questionando (da maneira de uma criança) sobre o comportamento esperado dele mesmo baseado no que vê e ouve do mundo. Não é um mero capricho ou escolha (como se ouve estupidamente por aí), é o próprio processo de se conhecer e se determinar como ser humano diante da sociedade, coisa que todo mundo faz, só que aqui é como se você estivesse em um corpo que não se “encaixasse”.

Não é difícil imaginar porque qualquer pai ficaria preocupado. Mas o essencial é que aqui os conflitos de Alex e Greg não têm uma origem simplesmente moral. Pais imensamente amorosos e cuidadosos, eles vão sendo confrontados por circunstâncias que ameaçam o futuro de seu filho não por quem ele é, mas pela forma como será julgado – que é a grande diferença entre ser preconceituoso ou não. Mesmo assim, o filme não se entrega a maniqueísmos e cada obstáculo toma um significado diferente de acordo com a personalidade de cada um. Sendo assim, é interessante notar como os problemas subentendidos na vida de Alex, tanto no campo pessoal como profissional, nos informam sobre suas inseguranças e sua maneira imediatista e explosiva – o que justifica, aliás, a escolha de Claire Danes, que se encaixa muito bem nesse tipo de figura (vide a série Homeland). Defensiva quanto ao futuro do filho, é perfeitamente compreensível que essa inevitável instabilidade se traduza em ofensas não intencionais ou até outros preconceitos (como no caso de sua relação com Judy). O que não diminui em nada o fato de que todas as suas escolhas são voltadas para o bem-estar de Jake.

Jim Parsons se distancia bastante de seu icônico Sheldon Cooper (The Big Bang Theory), se mostrando outro acerto (mesmo que inicialmente estranho) ao compor Greg como um sujeito passivo na maior do tempo. Mais controlado e sempre buscando colocar panos quentes quando tudo se complica, ele enfrenta os mesmos problemas com o filho, mas prefere buscar uma solução imediatamente mais racional (fruto de sua profissão como psicólogo), o que leva a um embate inevitável com a mulher. Falando nisso, outro mérito do roteiro é a forma como leva conflitos de diferentes origens a se juntarem de maneira bastante orgânica para compor a relação entre eles. Não há “somente” o caso de Jake isolado, pois uma situação dessa proporção os leva a questionarem suas próprias vidas, suas escolhas e seus arrependimentos.

Se há algo que deixa um gosto de decepção é a forma como a narrativa trata o próprio Jake. Praticamente despersonalizado pela direção de Howard, o garoto costuma aparecer brevemente em rápidas montagens e através de planos mais desfocados e com a câmera mais instável. Mesmo que se argumente que a intenção era essa (pelo fato justamente de ser apenas uma criança), nossa ideia do personagem se forma mais pela forma como os pais e Judy o descrevem – o que, de certa forma, pode ser encarada como uma dubiedade proposital de como sua caracterização varia de acordo com o julgamento dos outros (assim como acontecerá em sua vida adulta). Ainda assim, fica a sensação de que o personagem poderia ter mais espaço para despertar nossa empatia pessoal. Dessa forma, Um Garoto Como Jake é um filme muito mais sobre os pais do que o próprio, que o deixa um gostinho de que ele poderia ter ido mais além e explorado mais a temática.

Mas isso não impede que este se torne uma obra importante para os dias de hoje. Simples e sem mais rebuscadas estéticas e narrativas, é uma história bem contada, emocionante e, acima de tudo, necessária.

Nota: 

Trailer

https://www.youtube.com/watch?v=8eS2H2kaqlE

Direção: Silas Howard

Elenco: Claire Danes, Jim Parsons, Octavia Spencer, Priyanka Chopra, Amy Landecker, Ann Dowd, Leo James Davis

Sinopse: Alex (Claire Danes) e Greg Wheeler (Jim Parsons) têm grandes expectativas para seu filho Jake (Leo James Davis), um brilhante e precoce filho de quatro anos que prefere Cinderela à GI Joe. Na véspera do ciclo de admissão para os jardins de infância de Nova York, ciente de que os pais de Jake não poderiam pagar a taxa de matrícula da escola privada, Judy (Octavia Spencer), diretora da pré-escola do menino, encoraja-os a acentuar a expressão “variante de gênero” de Jake, para que ele se destacasse e conseguisse uma bolsa de estudos.

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