Crítica: A Voz Suprema do Blues

No disco Highway 61 Revisited, de 1965, Bob Dylan cantava na sua Tomsbtone Blues: Where Ma Raney and Beethoven, once unwrapped their bed roll (Onde Ma Raney e Beethoven certa vez desembrulharam seus sacos de dormir). Bob Dylan era um grande admirador de Ma Raney, mais até do que do compositor clássico também citado na canção. Ma Raney ou Gertrude Pridget era conhecida como a mãe do blues. Nascida entre Alabama e Georgia (ninguém sabe exatamente), começou cedo a cantar, aos 16 cantar blues e passou por vários grupos itinerantes conquistando plateias pelo sul norte-americano. Pode até não ter sido a mãe do blues, mas com certeza foi a mais famosa, tendo parcerias com Louis Armstrong, Sidney Bechet e principalmente a jovem Bessie Smith. Ma também foi uma das primeiras cantoras a faturar com gravações, com um contrato pela Paramount, gravou dezenas de canções em estúdios de Chicago, aproveitando a demanda de procura de registros de cantores negros. Nisso Ma Rainey foi soberana, com contratos de grandes valores, soube como poucos capitalizar dinheiro do mercado fonográfico incipiente. Em 1984 o dramaturgo August Wilson fez uma peça chamada Ma Rainey’s Black Bottom, onde contava uma tarde de gravação de Ma e sua banda, em um estúdio de Chicago em um dia muito quente. Essa peça virou filme na direção de George C. Wolfe e com produção da Netflix, falo de A Voz Suprema do Blues (Ma Rainey’s Black Bottom, 2020).

A história do filme conta uma tarde de gravação de Ma Rainey, uma das inúmeras que ela fazia em um estúdio de Chicago. Gravado por produtores brancos, ela e sua banda passam um dia tenso com a equipe de gravação, a banda não se entendendo, o trompetista Leeve querendo mostrar que é mais que um cara da banda e mostrar seu talento como compositor inovador. Tudo isso numa tarde quente, em um estúdio claustrofóbico, onde ninguém sairia ileso do turbilhão de emoções daquela que era pra ser uma simples sessão.

A Voz Suprema do Blues é mais uma produção da Netflix, projeto de Denzel Washington que tem como meta produzir várias peças do dramaturgo August Wilson.  A direção de Wolfe, diretor de teatro que aos poucos vai se aventurando pelo cinema, é correta no que ela propõe. O filme é teatral e a direção ousou pouco e apenas adaptou a peça para telona (no caso telinha…), mas ele funciona bem. Um filme que tinha tudo para abusar de música, usa pouco ela, focando mais nas relações humanas e bastidores da indústria musical. O roteiro gira em torno de dois personagens, Ma Rainey, que parece sempre se vingar, do seu jeito, dos brancos fazendo de tudo para tê-los nas mãos e ganhando muito pra isso e do audacioso trompetista Leeve. Ele quer mais do que ser um integrante da banda, quer ser um astro, tem projetos, sonhos, mas muito ressentimento e medo, parece que por mais que queira vencer e se libertar, algo o prende e o bloqueia, o que pode ser seu comportamento agressivo, sua insegurança ou apenas uma porta do estúdio que está sempre trancada. Viola Davis está muito bem, como de praxe, fazendo a mãe do blues, dando o toque de diva arrogante, exagerada, que sabe usar seu talento como arma pra colocar na mão quem ela quiser, principalmente brancos. Já Leeve é a despedida em cena do talentoso Chadwick Boseman que fez esse filme debilitado, sofrendo do câncer que tirou sua vida em agosto de 2020.

Boseman está muito bem, abusando de monólogos e histórias de seu personagem, alimentando sua eterna rixa com os conformados colegas de banda. Uma digna despedida de um talento que nos deixa tão precocemente. Talvez uma das falhas do roteiro é não termos um embate de atuação entre Davis e Boseman, os dois talentos brilham individualmente mas parece que faltou como tempero os dois juntos em uma grande cena.

Talvez o filme poderia ter nos brindado com mais música, não é sempre que temos um filme sobre uma lenda do blues dos anos 1920, gostaria de ouvir mais a cantora que interpreta com a alma. E outro ponto negativo, mas que se justifica por ser uma adaptação de teatro, é que ele é quase uma peça filmada, não usa externas, flashbacks, enfim mesmo curto, às vezes se torna cansativo.

A Voz Suprema do Blues é um filme de atores, e principalmente Boseman, em pelo menos duas cenas ele mostra todo se talento de atuação: uma quando ele conta em detalhes o estupro de sua mãe e as consequências, contado de uma maneira tão forte que faz uma história de terror ser fichinha perto da violência e o racismo do fato; e o embate entre ele seu colega de banda, Cutler, esse com sua religiosidade ferrenha e Leeve sempre em combate com Deus e seus fantasmas interiores.

Enfim, A Voz Suprema do Blues é uma digna despedida de um grande ator que pareceu ter dado toda sua intensidade e paixão à atuação. O filme é de Ma Rainey, mas Boseman e seu Leeve é que roubam a cena, senão o filme como um todo, sensacional, sim uma atuação visceral no seu canto dos cisnes.

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