Casa Ramil – Araújo Vianna
Muitas vezes as pessoas tendem a dizer que para ter talento a hereditariedade é um dos principais fatores. Discordo porque nem sempre santo de casa faz milagre, mas no caso dos Ramil, grande parte dos descendentes de Dona Dalva, a matriarca da família que faleceu ano passado, sua prole de geracional cantam e encantam os brasileiros há bastante tempo. Os manos Kleiton, Kledir e Vitor Ramil dispensam apresentações, mas seus filhos e sobrinhos, unindo as forças no projeto Casa Ramil, corroboram a tese de alguns que os dons artísticos estão no sangue. E domingo passado tive o privilégio de assistir mais uma vez esse sensacional show que é Casa Ramil, mais uma vez no palco sagrado do Araújo Vianna.
Em um domingo tenso para colorados e gremistas, que por obra dos deuses da bola ainda bem que foi vermelho, cerca de 1.600 pessoas se deslocaram ao Araújo para admirar o trabalho do ramo Ramil. Público mais baixo que o último show deles, mas talvez se justifique por que é o mesmo show, é fim de ano e não teríamos grandes novidades. Mas azar de quem não foi. Com aquele atraso básico de atração nacional, por volta das 20h20min, o time composto por Ian, João, Gutcha, Thiago, Vitor, Kleiton e Kledir estavam a postos, cada qual no seu canto, sentados com seus instrumentos à tiracolo e abrindo o show com a canção que dá nome ao grupo, Casa Ramil. O que segue é aquela viagem sonora com canções como Lagoa dos Patos, essa da dupla Kleiton e Kledir seguida por Canto, do Thiago Ramil. O show é uma aula de talento, em que os sete integrantes além de cantarem muito bem, fazem arranjos vocais em conjunto que é um enlevo aos ouvidos e usam e abusam de diversos instrumentos, como violões com cordas de aço, de nylon, violino, rabecas, baixo elétrico. Nos presenteiam com um saz, uma espécie de violão turco, órgão de fole, violão venezuelano, baby violão, e isso só nas cordas, por que a Gutcha, além de cantar divinamente, toca flauta, violino e faz junto com o João Ramil, chover na percussão com bumbo leguero, sopapo, chocalhos, pandeiro, tamborim. Uma pequena orquestra percussiva. Ramilonga segue o baile, emocionando a plateia com sua ode a nossa tão calejada, mas sempre amada Porto Alegre.




O show tem seguimento com a divertida Auto Retrato (essa do Kleiton e Kledir), onde todos os integrantes cantam um trecho e vemos o quanto, por mais distintas que sejam suas vozes , elas se parecem muito, prova que a consanguinidade é implacável. Outra característica do show é que o Vitor e o Kledir passam o tempo todo contando deliciosas histórias, fazendo o público rir, e por mais que quem já assistiu o show várias vezes e a histórias sejam as mesmas, a naturalidade e bom humor deles cativa demais. Ian Ramil chama uma dela, O Mundo é Meu País (como sua voz é parecida com o papai Vitor) e Thiago Ramil canta em seguida a delicada Amora. Em um show com convidados, chamam Iuri Ramil, filho do irmão mais velho do clã, que manda ver com a família o sucesso Nem Pensar.
Estrela Estrela, do Vitor, é mais um momento emocionante do show, com eles dividindo o vocal, deixando a belíssima canção mais bonita ainda. Bichinho, do Ian, e Tartaruga, cantada por Gutcha, segue o baile. Além de simplesmente Gutcha ser uma orquestra ambulante, ela tem uma voz ótima e uma presença forte de palco, ocupando a parte central dele, que faz ela ser o centro das atenções. O hino não oficial do Rio Grande do Sul, Vento Negro, dos Almôndegas, é tocado com a presença de toda a família, em mais uma momento de cair lágrimas dos espectadores. Destaque para o som do espetáculo, tudo muito caprichado, destacando as vozes dos artistas e os instrumentos num volume excelente, num show de equalização.





Thiago então puxa sua canção, Casca, e em seguida Gutcha pega o pandeiro e interpreta o samba dos Almôndegas, Até Não Mais. Chegou o momento da Paixão, do Kledir, talvez uma das músicas mais lindas do cancioneiro nacional (ao menos para mim) com o toque de emoção garantido, por que João Ramil canta com o pai Kledir essa inesquecível poesia que foi sucesso nacional nos idos dos anos 1980. Mas o momento do show mais emocionante para mim foi quando tocaram Noite de São João. A música nos remete às coisas boas da infância, reminiscência de outros tempos e uma nostalgia gostosa, ainda mais com aquelas sete vozes abrilhantando. Momento incrível do espetáculo com a plateia pela primeira vez marcando junto com palmas e se soltando um pouco. O show também é uma homenagem à Dona Dalva, que é lembrada em gravações antigas e cultuada pelos filhos e netos que muito se divertiram com ela nas férias dos Ramil no Laranjal.
O show segue com Ian Ramil puxando a sua Artigo 5, que antecede outro momento de emoção quando eles chamam ao palco Araceli Matus, neta da inesquecível Mercedes Sosa que foi parceira de Kleiton e Kledir nos anos 1980. E juntos tocam Semeadura, canção de Vitor que a avó Mercedes cantou com eles no disco em espanhol da dupla. Momento antológico e com direito a Gutcha dizer que o Brasil é um território indígena no final da música. Fecha o show, ou ao menos o pré-bis, como fala o Vitor, Vira Virou, de Kleiton, mesclando espanhol com português, levanta a plateia nessa poesia que representa a coragem de mudança e a saudade.





Para o bis, além da volta do Iuri, é claro que temos Deixando o Pago, do Vitor. Incrível que um homem urbano conseguiu sintetizar com tanta emoção e realismo a lida do campo. Essa com a plateia levantada e dividindo os vocais toda a família. E para terminar, falando em saudades, eles atacam de Deu Pra Ti, outro hino não oficial de Porto Alegre bússola nostálgica de quem vem de volta para a capital e emociona tanto quem está de volta ou quem nunca saiu daqui. Canção que encerra com o povo de pé um espetáculo que mistura talento, sensibilidade, memória e emoção.
Diferente do show de 2023, onde a turma tinha perdido um dia antes o músico, amigo e ex-Almôndega Zé Flávio e não tinha um clima tão legal no palco, nesse espetáculo os Ramil estavam mais leves, mais espontâneos, e como diz o próprio Vitor, se curtindo, ouvindo suas vozes e sentindo aquela sinergia mágica da família musical. A Casa Ramil é um show obrigatório, um oásis musical num deserto de grandes espetáculos que às vezes não dizem nada. Mesclando tradição, modernidade e canções populares e jamais esquecendo as origens, emocionam e encantam quem assiste não só pela primeira vez mas pela segunda ou terceira… enfim, sempre somos surpreendidos por algum novo truque da incrível família Ramil.


