Brincando com fogo – “Garotas em Chamas”
Engana-se quem acha que aparições e assombrações são exemplos do que pior poderia aterrorizar um ser humano, tenta investigar os erros enterrados há anos e enfrentar um sistema já consolidado.
C.J Tudor, que já fez um grande sucesso com “O Homem de Giz”, usa como base a história e a realidade escondida da Igreja (no caso é a Anglicana, mas poderia ser qualquer religião) para criar “Garotas em Chamas”, seu novo livro, trazido pela Intrínseca, com tradução de Regiane Winarski.
A cidadezinha de Chapel Croft, no interior da Inglaterra, vivenciou dois eventos marcantes. Séculos atrás protestantes foram queimados, incluindo duas menininhas Maggie e Abigail, antes de serem queimadas a primeira teve os olhos arrancados e a segunda fora desmembrada. No início dos anos 1990 outras duas meninas, mais velhas, com 15 anos, desapareceram sem deixar rastros, eram Merry e Joy.
O primeiro evento dita o tom de terror. A cidade tem a tradição de fazer bonecas de gravetos e, no aniversário do evento, fazem uma grande fogueira e queimam as bonecas. Há quem diga que as Garotas em Chamas assombram a capelinha da cidade, alguns afirmam que elas aparecem apenas para quem está à beira de algum perigo, mesmo que não saiba ainda, como se fosse um aviso.
Trinta anos depois do segundo evento Chapel Croft passa por mais um período estranho, o vigário responsável pela capela comete suicídio, supostamente. Para ocupar o lugar vazio é chamada uma vigária de Nottingham, Jack Brooks, que está também enfrentando problemas na capela dela e precisa de uma solução para se afastar de lá.
Jack teve um passado difícil, mas não fala muito sobre isso, o que importa para ela é a carreira de vigária e sua filha, Florence (Flo). Depois de uma experiência triste em sua capela, ela vai para Chapel Croft com Flo, acompanha pela fiel câmera Nikon, para registrar cada detalhe sinistro desse novo “lar”.
A ideia era simplesmente assumir o lugar do antigo vigário e seguir em frente, embora o posto fosse interino, ainda iriam destinar um vigário permanente para lá. De toda forma, Jack não se conteve em pesquisar a história da cidade e, aos poucos, investigar o que realmente havia acontecido com seu antecessor.
O que ela descobre não tem nada de sobrenatural, são fatos resultados de ações de serem humanos com péssima índole, acobertados por seres humanos que tentam ser bons, mas que são influenciados pelo poder e pela ideia de que a imagem da Igreja deve ser preservada acima de tudo.
Ah, tudo relacionado ao desaparecido de Merry e Joy.
Matthew Fletcher, o vigário que se matou dentro da capela de Chapel Croft, descobriu alguns segredos da cidade. Primeiro que a família que comanda a cidade, os Harper, não são descendentes de nenhum dos mártires protestantes (eles se valiam disso para comandar) e as atrocidades de um outro vigário, que desapareceu um pouco depois que Merry e Joy desapareceu.
Jack encontrou parte da pesquisa que Fletcher fez, usando isso como ponto de partida, enquanto tentando ajudar na adaptação de Flo na cidade, que também foi um desafio. Flo fez um “amigo” assim que chegou, Lucas Wrigley, um garoto estranho, com uma doença neurológica que o fazia ter espasmos contínuos, além disso, ele também tinha um passado estranho.
E as garotas em chamas? Tanto Jack quanto Flo avistaram figuras estranhas na capela e no cemitério, meninas envoltas em chamas, uma sem os olhos e outra sem braços, com forte cheiro de queimado. Ambas são céticas, apesar da religião, mas nem elas podem negar o que viram, alertando para o desfecho dessa história cheia de reviravoltas.
Os momentos em que elas aparecem são tão bem descritos que é possível visualizar a cena, portando sugiro lerem a luz do dia, ao ar livre e longe de uma capelinha. Cá entre nós, fiquei com medo de sonhar com essas meninas (um dia eu até demorei a dormir pensando nelas).
Ainda assim, com toda minha aversão a histórias de terror, remendo a leitura desse livro, até para medrosos como eu. Isso porque a leitura é tão boa, a história prende o leitor e, mesmo nos momentos mais tensos, não dá vontade de parar de ler até desenrolar toda a história.
São histórias de terror e suspense desse estilo que tenho coragem de ler ou assistir, porque não é só uma matança ou assombrações aleatórias, tem uma estória sólida por trás, aliás, pequenas estórias que vão se ligando. E, neste caso, essas estórias são baseadas na história real e em fatos quase que atemporais.
A história dos mártires é real. No reinado de Mary Tudor, mais ou menos entre 1555 e 1557, houve perseguição a protestantes e, no ducado de Sussex (onde a cidade fictícia Chapel Croft é localizada no livro), 17 pessoas que não negaram o protestantismo foram queimadas em fogueiras. Algumas cidades ostentam memoriais com os nomes de alguns desses mártires.
Se houve Abigail e Maggie eu não sei, mas também não duvido.
Os atos atrozes do antigo vigário de Chapel Croft era pedofilia, abuso sexual, agressão e realização de exorcismos sem autorização da Igreja. Não sei direito sobre os exorcismos, mas as outras atitudes, que são crimes, existem até demais, não só dentro do Anglicanismo (religião oficial da Inglaterra), mas no Catolicismo, no Protestantismo e nas demais religiões (e em outras áreas da vida). Uma triste realidade.
É interessante ver o destaque da religião nessa estória, com uma protagonista que é vigária, com uma personalidade tão diferente, tão moderna, abre espaço para muitas discussões. Uma das que mais gostei de ver foi a análise da bondade e da maldade humana, questionaram Jack se uma pessoa pode nascer ruim ou isso não. Como responder uma pergunta dessas?
O fato de uma mulher trabalhar em um “cargo” tipicamente masculino, chefe da Igreja, também é abordado em alguns momentos. Isso pode ser estranho para católicos, por exemplo, mas é ótimo para aprender um pouco sobre essa possibilidade e os desafios dentro desta (que não se diferenciam muito dos demais cargos “masculinos”).
Apesar desses questionamentos, o livro tem um tom leve, cheio de referências do cinema da televisão dos anos de 1980 e 1990 e diálogos cômicos, o que equilibra bem e torna a leitura muito agradável.
Até mais!