Almôndegas retorna ao Araújo Vianna, em Porto Alegre

Em março deste ano uma reunião de uma banda mexeu com os gaúchos. Em duas noites históricas, uma no Araújo Vianna, e outra no Theatro Guarany em Pelotas, o público pode se transpor aos anos 1970 com dois shows dos lendários Almôndegas, icônico grupo musical  da década de 1970, que abriu as porteiras para a Música Popular Gaúcha, a MPG, misturando MPB, samba, folclore, rock, nativismo e urbanidade, em apresentações com componentes cênicos e libertários e sem perder o bom humor. Com essas duas datas com casa cheia, a banda anunciou para dezembro mais duas datas. Mas como a vida é esse mistério profundo, meses atrás, a banda perdeu o guitarrista Zé Flávio, que esteve presente nos dois shows de março. Como a vida segue, nada como homenagear o saudoso guitarrista, fazendo esse show, e sexta passada os Almôndegas, agora desplugados, como eram no início da banda, voltaram ao Araújo Vianna para mais uma apresentação. E eu conto como foi essa mágica viagem musical no tempo.

Se em março, até pela novidade e os ares do mês que são sempre os melhores do ano, até porque o ano começa realmente em março, o Araújo estava completamente lotado, já na última sexta, um bom público de mais de 2 mil pessoas se fez presente para a apresentação. Por volta das 21h15min, Kleiton, Kledir, Quico, João Baptista e Gilnei Silveira subiram ao palco e de cara tocaram aquele que é quase um hino não oficial do Rio Grande do Sul, a lindissima Vento Negro, com Quico dedilhando o solo clássico da música, cantando e emocionando a plateia. No término da música, Kledir disse que a banda quase cancelou o show devido a morte do Zé Flávio, mas em memória dele e em respeito aos fãs, resolveram tocar pra frente e a plateia ovacionou Zé Flávio com uma emocionante salva de palmas. Pery Souza, um dos integrantes originais, e hoje adoentado, também é lembrado com carinho pelo grupo. O show segue com Amargo, canção do primeiro disco e seguem com a divertida Em Palpos de Aranha, do disco Alhos com Bugalhos.

O que segue é uma sucessão de grandes músicas, onde Kledir mesmo define: bem-vindo aos anos 1970, com Amor Caipira e Trouxa de Minas, seguida pela ótima Miss Daisy, que na época já brincava com os americanismos no nosso cotidiano. Os irmãos Ramil e Gilnei saem do palco e Quico, juntamente com João Baptista, explicam uma ligação entre o violonista com Paul McCartney, já que sua canção Go era apenas rústica e quase acústica e virou diferente pelo arranho rebuscado que se transformou na gravação, o mesmo que aconteceu com The Long and Winding Road, de Paul. Em brincadeiras à parte, Quico manda ver com seu violão de 12 cordas, e junto ao arranjo maravilhoso do baixista João Baptista, executam a canção em um grande momento do show.

A apresentação segue com a romântica Clô, de 1975, depois tocam Mantra e Alô Buenas, ambas do álbum Circo de Marionetes, de 1978. E aí chega o momento que Kledir e Gilnei ficam sós no palco, trovando fiado contam as histórias dos Almôndegas e a origem do nome da banda, numa divertida e descontraída conversa, que antecede o sucesso Até Não Mais, samba do primeiro disco, com a voz suave de Kledir. Com a banda de volta, lembram do tempo em que alguns integrantes cursaram o curso de Belas Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e no prédio do Instituto de Artes tinha um elevador que só chegava até o sétimo andar, mote para tocarem Elevador, música inspirada naqueles idos tempos.  Androginismo, próxima canção, que hoje foi adotada como um símbolo da luta LGBTQ+, é mais um dos grandes momentos do show, mostrando como era nos anos 1970 a percepção sobre um homosexual, uma das primeiras canções da época a tratar do tema do preconceito.

Chegou o momento de Kleiton. Ele, de violão em punho, sozinho no palco, faz uma homenagem ao nativismo e músicas gauchescas, emendando um medley com Velha Gaita, Felicidade, de Lupicínio Rodrigues, Pézinho e encerra com Prenda Minha. Com a canção Circo de Marionetes falam da dificuldade de fazer arte em tempos nebulosos como nos anos 1970, tomados por uma ditadura militar e que a criatividade era a arma para driblar a censura. A banda segue com os sucessos Piquete do Caveira e depois Haragana, momento onde a plateia se levanta das cadeiras e se entrega de vez ao espetáculo dos guris dos Almôndegas. Canção da Meia-noite, essa com a própria banda já de pé (menos o Gilnei, né…), encerra a apresentação com essa que foi um sucesso nacional, trilha de novela e mostrou a cara da música gaúcha moderna pro resto do Brasil. Mas é claro que tínhamos espaço para um bis e com Sombra Fresca e Rock no Quintal a banda retorna e faz todo mundo dançar e dessa vez de verdade, encerra o show com a canção que tem o nome do conjunto, Almôndegas.  

Ouvir os Almôndegas foi um verdadeiro barato. Suas canções inteligentes, bem humoradas, com letras que misturam a tradição da música do Sul do país com a pegada moderna do som dos anos 1970, uma miscelânea de folclore, rock rural, nativismo e MPB, excelentes músicos. Não tem como não elogiar o baixista João Baptista, com carreira farta, acompanhou um monte de gente boa da MPB ao passar das décadas. Gilnei Silveira também é ótimo, tanto na bateria quanto nos seus instrumentos de percussão. Quico tocando muito seu violão de 12 cordas e ainda com sua linda voz. E, é claro, os irmãos Kleiton e Kledir que dispensam apresentações. O único porém é que, com toda justificativa, achei o show um pouco protocolar demais, às vezes frio, mas muito por causa do baque da morte do Zé Flávio há 3 meses. Com a perda do guitarrista e amigo, parece que a volta já não tinha mais tanta graça como foi em março, fato compreensível, mas que nada que o talento do grupo, profissionalismo, bom humor e simpatia não tenham passado por cima, mostrando que mesmo cinquenta anos depois o conjunto ainda é uma agradável viração, que refresca nossas almas.

Crédito das fotos: Vívian Carravetta

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