Como conceituar o “Especial”?
É bem difícil, cada um tem suas características próprias. Mas tem algumas pessoas nascem diferente, destoando do que a sociedade acredita como “Especial”, muitas vezes vistas como pessoas deficientes. Essa diferença é difícil de lidar.
Os portadores do espectro autista são, historicamente, alvo de preconceitos seríssimos. Sabe-se que muitos são tratados como seres irracionais, quando não relacionam essa condição com crenças religiosas (possessão, por exemplo). Eles sofrem maus tratos e são, muitas vezes, invisíveis para a sociedade.
É uma dura realidade que vem mudando lentamente, com mais conhecimento científico e colocando em prática um princípio simples, mas esquecido, tratar as pessoas com gentileza e, por que não, amor.
O longa “Mais Que Especial” mostra tanto essa realidade como uma das formas de a mudar. Essa é uma produção de Erik Toledano e Oliver Nakache (os mesmos de “Os Intocáveis) e está na lista da edição do Festival Varilux de Cinema Francês de 2020, que ocorrerá entre os dias 19 de novembro e 03 de dezembro.
O equipe do NoSet teve acesso antecipado da produção, que estará sendo distribuída no Brasil pela Califórnia Filmes.
Bruno Haroche era dono de uma colônia de férias, certo verão ele conheceu Joseph, um garoto que era diagnosticado com autismo e que poucos sabiam lidar com ele, tendo passado meses a fio em uma clínica para o “tratamento”, o qual o deixava dopado o dia inteiro. Os pais de Joseph queriam que ele pudesse viver, ter experiências, como qualquer pessoa “normal”, por isso procuraram a colônia de férias de Bruno. Aquele verão mudou a vida de Bruno e de Joseph.
Bruno ajudou e se tornou uma figura importantíssima na vida de Joseph, ele sentiu ali que poderia ajudar mais pessoas, mais autistas que eram incompreendidos. Ele fundou “A Voz dos Justos”, associação em que ele acolheria, auxiliaria e cuidaria dessas pessoas.
Junto a ele está Malik, que se tornou responsável pelos cuidadores, ensinando e treinando jovens que não teriam chances de estudar por outras vias. Eram duas instituições em uma só, ajudando inúmeras pessoas sem diferença de religião, crença, etnia, classe social.
Esse trabalho funcionou sem interferência do governo, nem ajuda deste, durante 15 anos. Os próprios hospitais procuram por Bruno para encaixar pacientes, confiando no trabalho dele e de sua equipe.
A agência sanitária da França resolveu inspecionar o trabalho deles, percebendo que nem Bruno nem os cuidadores têm certificados ou licenças para realizarem esse trabalho, sem contar com a sede, onde os pacientes eram abrigados, já lotada e sem recursos. Ameaçaram encerrar as instituições por essas questões burocráticas, mas Bruno mostrou a importância do trabalho deles, o que impediu de a ameaça ser cumprida.
Há histórias paralelas, começando pelo próprio Joseph. Ele já é adulto, mas ainda tem muita confiança em Bruno, que está sempre disponível para quando ele precisar. Joseph tem algumas obsessões (uma das características do espectro), uma delas é o botão de emergência do metrô, ele não conseguia completar a viagem porque apertava o botão e acabava detido, sendo salvo por Bruno sempre.
Embora tenha muita verdade nesse caso dele, a forma como é mostrado tem um tom de humor e otimismo.
O tom de humor também está na relação entre Malik e Bruno, e entre eles e os cuidadores. Enquanto Bruno é quase sempre sério, não se afasta do celular (sempre tem alguém precisando falar com ele) e se casou com o trabalho, Malik é mais informal, descontraído e, com ajuda do resto da equipe de funcionários, fica arranjando encontrou às cegas para Bruno.
Quanto aos cuidadores (ou estagiários), Malik tem um jeito bem duro de ensinar, não tem papas na língua e cobra mesmo, mas não deixa de se importar com cada um que está ali.
Essa dupla de amigos representa bem esse atendimento sem olhar a quem que a instituição tem, Malik é mulçumano e Bruno é judeu, mais uma grande diferença entre eles. Além disso, na equipe é possível ver uma diversidade gigante de religiões, algumas pessoas parecem compartilhar as crenças de Bruno, outros são mulçumanos, ainda tem alguns com forte influência de religiões africanas, mas todos convivem bem (na medida do possível), com o objetivo no trabalho.
Outra história paralela, que acaba interferindo muito na principal e na relação com os cuidadores, é a de Valetim. Ele é um garoto de uns 13 anos com autismo severo, seus pais estão gravemente doentes, à beira da morte, e ele está sob a custódia do Estado, internado em uma clínica para pacientes com distúrbios mentais. A médica responsável por essa ala pede que Bruno o abrigue na instituição.
Mesmo sabendo de todas as dificuldades, Bruno aceita o receber, colocando-o sob os cuidados de Dylan. Mas Valetim é um grande desafio, ele nunca aprendeu a falar, sempre viveu aprisionado, a única forma que ele tem de comunicação é a violência, até contra ele mesmo, por isso é necessário que ele use um capacete de proteção a todo momento.
Ele precisa de cuidados de pessoas como Bruno, Malik e até de Dylan para descobrir que é mais do que normal.
Representando a equipe do NoSet, tive a honra de assistir a coletiva de imprensa do filme, que contou com a presença dos criadores da produção, Erik Toledano e Oliver Nakache.
Na ocasião eles afirmaram terem optado por um formato de filme que lembra um documentário, uma vez que a história é real. O elenco e a equipe trabalharam de perto com os verdadeiros Bruno e Malik para entender todo o mecanismo, além de terem incluído as crianças e adolescentes que realmente são atendidas pela instituição.
Em outras palavras, quase todos os autistas representados no filme são realmente autistas, inclusive Joseph, que, na vida real, chama-se Benjamin Lesieur. As cenas dele com Vincent Cassel, o Bruno, têm uma energia única, ele é de uma pureza que deixa tudo mais leve.
Ah, a sequência final do filme (desculpa o spoiler, faz-se necessário) é de Joseph dançando e, aparentemente (não deu tempo tirar essa dúvida), o grupo com ele se apresentava é de autistas. A cena toda é linda, não por técnica, mas porque vemos a emoção de Bruno aflorar ali, ele se emociona como se fosse o pai de Joseph.
O único que não é Marco Locatelli, que interpreta Valentim. A história dele foi contada na coletiva e é bem interessante. Ele não era ator, ele quis fazer parte do projeto porque tem um irmãozinho que é autista em grau severo, como Valentim, e assim ele o entenderia melhor.
Eu já tinha achado a interpretação dele excelente sem saber disso, depois que fiquei sabendo senti um peso ainda maior nesse gesto. Na verdade, esses detalhes deram ainda mais importância para um trabalho tão bonito.
Como citei há pouco, Bruno é vivido por Vincent Cassel, conhecido por filmes como “Agentes Secretos”, “Elizabeth” (de 1998), “Doze Homens e Outro Segredo”, “Cisne Negro”, “Bela e a Fera” (versão francesa de 2014), “Rio, Eu Te Amo”, “Gauguin – Viagem ao Taiti” e o brasileiro “O Filme da minha Vida” (de Selton Mello). Também está no elenco da aclamada “Westworld”.
“Mais Que Especiais | Hors normes”
Direção: Olivier Nakache, Éric Toledan
Elenco: Vincent Cassel, Reda Kateb, Hélène Vincent
Gênero: Comédia
País: França
Ano: 2019
Distribuição no Brasil: California Filmes
Sinopse: Há 20 anos Bruno e Malik vivem num mundo à parte, aquele habitado pelas crianças e adolescentes autistas. Trabalhando cada um em uma instituição diferente, eles se dedicam à formação de jovens vindos de bairros problemáticos para tentar lidar com esses casos considerados “super-complexos”. Uma aliança pouco usual para ersonalidades fora do comum.
O Festival Varilux de Cinema Francês 2020: Um clássico e 17 longas-metragens inéditos e recentes (2019/2020) da cinematografia francesa integram a seleção do Festival Varilux 2020 que será realizado em todo país nos cinemas. Entre eles, um documentário e 17 longas de ficção com gêneros como comédia, drama e animação Ainda não há um número definido de cidades e de cinemas participantes. Devido à pandemia do novo coronavírus, alguns exibidores terão a opção de programar o festival em datas diferentes – até o final de fevereiro de 2021. O importante, de acordo com a Bonfilm, produtora do evento, é que as produções cheguem ao público em todo Brasil e contribuam para a retomada dos cinemas do país.
Os outros nomes do elenco são: Reda Kateb (Malik), Hélène Vincent, Catherine Mouchet, Frédéric Pierrot, Suliane Brahim, Lyna Khoudri, Aloïse Sauvage, dentre outros.
Até mais!