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FILMES CRÍTICAS

Crítica: A Vida Invisível

Crítica: A Vida Invisível
  • Publicado em: novembro 2, 2019

        A Vida Invisível [2019] é um filme construído a partir do recorte de dramas cotidianos. Histórias próximas, que transitam no entorno das nossas vidas e nos dão a sensação de que já as conhecemos, com personagens diferentes. São histórias “estreladas” por nossa mãe, nossa tia, nossos avós. Os problemas, dilemas e limitações dos personagens são simples, embora profundos, impactando e sensibilizando exatamente por esta identidade que provocam na plateia.

A história se passa no Rio de Janeiro, na virada da década de 1940 para 1950. Eurídice [Carol Duarte] e Guida [Julia Stockler] são filhas de Manuel, um padeiro português rígido e inflexível na criação das duas. Dividem o quarto e uma amizade intensa. Guida é a extrovertida. Está desabrochando para a vida e para o amor. Ela faz o contraste com a introversão de Eurídice, dedicada ao piano e ao sonho de estudar em um conservatório em Viena.

Atraída por Yorgus, um marinheiro sedutor, Guida abandona a família com um bilhete e embarca com ele rumo à Grécia. A separação súbita e inesperada da única pessoa a qual se sentia próxima, provoca em Eurídice uma profunda dor. Em seguida, somos levados diretamente ao casamento de Eurídice. Não há explicações de como a vida dela evoluiu até ali ou a apresentação prévia daquele que será o seu marido, Antenor, interpretado por Gregório Duvivier. E nesse ponto o diretor Karim Aïnouz, de Madame Satã, mostra o seu estilo. Os cortes realizados na narrativa são um ponto forte do filme, que não subestima ou trata o público com indulgência. É preciso atenção e reflexão para acompanhar o que ocorre com a história e seus personagens. O casamento é a saída para a solidão de Eurídice e atende às expectativas da sua família, abalada pela rebeldia da irmã renegada. Em algum momento depois do casamento da irmã, Guida retorna ao Brasil, grávida e abandonada. A história segue um curso, que obviamente não comentarei para evitar spoilers.

Muito embora o filme tenha dois claros focos narrativos, as irmãs, ao redor delas orbitam diversos personagens interessantes. Entre eles, o melhor é Antenor, interpretado de forma precisa por Duvivier. Forçado a desempenhar o papel para o qual não estava preparado, o de homem forte e líder da família, um “clássico” dos anos 1950, Antenor luta contra a sua própria sensibilidade, a insegurança e o medo de perder a mulher que ama.

O filme, assim como o livro no qual se baseou A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, da escritora Martha Batalha (que concorre ao prêmio Jabuti deste ano com o livro Nunca Houve um Castelo), tem um claro tema central: a condição da mulher e os efeitos nocivos de uma sociedade controlada pelos homens. Um meio social no qual não importa o talento e valor, mas sim o papel que elas estão destinadas a desempenhar em sua família.

O interessante é que a história deixa claro que o patriarcado provoca a infelicidade tanto das oprimidas quanto no opressores, como em Manuel, um pai que rejeita a filha e nunca mais fica em paz consigo mesmo. Aliás, em A Vida Invisível a felicidade é fugaz e se mostra pouco nas suas duas horas e vinte minutos de duração. Todos os personagens tendem à estereotipação, o que contribui para a formação da identidade com o público que mencionei no início. Além disso, são eles prisioneiros e vítimas do seu tempo e do que a sociedade e a família lhes exigem.

Quanto aos seus aspectos técnicos, nada há a elogiar ou criticar. Afora o uso de alguns filtros de lente, recurso comum em filmes de época, o padrão da filmagem é conservador. A fotografia tende ao pobre. Parece visar mais as pequenas telas das salas de estar do que as grandes telas de cinema.

        A Vida Invisível ganhou o prestigioso prêmio Um Certo Olhar, este ano, no festival de Cannes. Foi escolhido como o nosso representante no Óscar de melhor filme estrangeiro, depois de uma ruidosa disputa com Bacurau. Contra o último, pesou o fato de ser polêmico em um momento político conturbado. A favor do primeiro, o fato de tratar de um tema universal, a opressão à mulher. De qualquer modo estaremos bem representados.

Recomendo.

Written By
Daniel Nonohay

Nasceu em 1973 e mora em Porto Alegre. É casado e pai de duas filhas. Juiz do trabalho, escreveu o seu primeiro romance à mão, em dois cadernos pautados, quando tinha 17 anos. Em 2016, lançou o romance Um Passeio no Jardim da Vingança, pela Editora Novo Século. Publica regularmente outros textos em seu site, www.danielnonohay.com.br. É, também, autor de artigos técnicos, na área do Direito, e políticos que foram publicados em livros, jornais e sites. Organizou livros de coletâneas. É colorado. Atuou como professor e é pós-graduado em Direito do Trabalho, Direito Processual do Trabalho e Direito Previdenciário. Foi Presidente da Associação dos Magistrados do Trabalho do Rio Grande do Sul. Atualmente, aproveita cada segundo livre para escrever, a sua grande paixão.