Toquinho – Só Tenho Tempo Para Ser Feliz – Araújo Vianna
O violão sempre andou lado a lado com a música brasileira. Desde os anos 1930, 1940, com os primórdios do samba, do choro, até as serestas melancólicas do samba-canção, o instrumento, depois que começou a ser respeitado (sim, houve uma época em que violão era coisa de vagabundo e gente fina tocava mesmo era piano) não largou mais da caminhada da nossa música. Com a bossa nova e o famoso banquinho e um violão, atingiu o patamar máximo, com João Gilberto revolucionando o instrumento com sua batida única e inovadora, gerando uma leva de músicos que, apaixonados pelo cantor baiano, quiserem aprender a tocá-lo. A MPB dos anos 1960 sempre teve um flerte com o instrumento de seis cordas, chegando ao cúmulo de alguns artistas protestarem contra a guitarra elétrica. Bem, com a Jovem Guarda, realmente a guitarra começou a fazer a cabeça da juventude, mas mesmo assim, jamais deixamos o violão de lado. E eu, quando penso em violão, associo logo a Toquinho. O cantor, instrumentista e compositor paulista, sempre foi uma referência e símbolo de como tocar um bom violão. E Toquinho, com seus quase 80 anos, começou um novo espetáculo, relembrando seus 60 anos de carreira. Porto Alegre teve o prazer de assistir em primeira mão o show Só Tenho Tempo Para Ser Feliz, sábado passado no Araújo Vianna. Logicamente que o NoSet não ia deixar passar esse momento e marcou presença para ver esse ícone da nossa música.




Naquele sábado abafado de primavera, em que momentos antes caiu um temporal que lavou Porto Alegre, mas felizmente não deixou rastros negativos pela cidade, um público reduzido, mas fiel, compareceu ao auditório para prestigiar o cantor. Com um show de esmerada produção, banda completa, vocais de apoio e um voluptuoso telão, o cantor promete um passeio por suas seis décadas de contribuição cultural de boa música para nossos ouvidos. Com um leve atraso de 20 minutos, a banda, com dois teclados, um percussionista, um baterista e um baixista, acompanhada de um trio de backing vocals, sobe ao palco. Com imagens do cantor ao fundo, os três vocalistas aquecem a plateia com canções de Toquinho que mostram toda a sua faceta espiritual e de reverência às entidades, fazendo um medley incluindo Bênção Bahia, Tatamirô, Maria Vai com as Outras e Meu Pai Oxalá. Só então, com seu inseparável violão em punho, o cantor, esbanjando simpatia com aquele sorriso característico, já emenda seu clássico em parceria com Vinicius de Moraes, Tarde em Itapoã, para delírio da comportada plateia. Toquinho tem o dom da comunicação, e a cada canção conversa com o público como se estivesse num boteco, emendando histórias e alegria.
Para anunciar a música que dá nome ao show, avisa que com 80 anos, ele só espera uma coisa da sua vida: ser feliz. Conta histórias como a do dia em que Marcello Mastroianni se queixou para ele que ser cantor era mais fácil que ser ator, mas mesmo assim, atuar era melhor que trabalhar, gerando gargalhadas da plateia. Ele então faz um pot-pourri com canções como Na Boca da Noite, de Paulo Vanzolini e duas parcerias dele com Jorge Ben Jor, Carolina Carol Bela e Que Maravilha. E como parcerias gigantes não faltam na carreira do nosso Toco, ele então fala de Chico Buarque e segue com dois clássicos da dupla, Samba de Orly e Samba pra Vinicius. Toquinho também fez composições para novelas e com o poetinha assina as canções para o sucesso O Bem Amado ,de 1973, incluindo na sequência mais uma que fez com Moraes, Sei Lá… A Vida Tem Sempre Razão, e uma dos anos 1980, a belíssima Ao que Vai Chegar. Um ponto negativo do show é que o microfone do mestre estava mal equalizado, o que deixava sua voz embolada, assim como a dos próprios vocais de apoio, atrapalhando a sua macia e delicada voz, tão bela de se ouvir.





Chega o momento que Toquinho fala sobre seu relacionamento com seu melhor amigo, o violão. Fala que desde jovem dedilhou o instrumento e teve uma formação clássica muito marcante. Fala do mestre Baden Powell, que foi sua influência e confessa que foi Vinicius de Moraes que mandou ele maneirar na erudição do instrumento. Graças a ele, Toquinho conseguiu unir o clássico ao popular, marca registrada de sua carreira de instrumentista. Segue com um sensacional solo de violão, em que mostra todo seu talento, onde transita com maestria entre o clássico e o mais agradável violão popular. Toquinho difere dos grandes violonistas que temos por aí por isso mesmo. Ao invés daquela metralhadora de notas e virtuose que serve apenas para uma contemplação de poucos, alegra nossos ouvidos com notas suaves e melodias hipnóticas de uma forma direta, sem abandonar a técnica, mas faz com que qualquer pessoa pare para vê-lo e ouvi-lo tocar sem se aborrecer. Com certeza uma das melhores performances de violão que já assisti em minha vida. O show continua com Toquinho lembrando sua parceria com o compositor gaúcho Mutinho com duas canções, Escravo da Alegria e Turbilhão, que segundo ele, foi a música que fez Vinicius de Moraes decidir se casar pela oitava vez.
Toquinho então anuncia com muita alegria a chegada da cantora Camilla Faustino ao palco. Ela já estava no início, só que disfarçada como a terceira backing vocal que misteriosamente sumiu, e agora volta com estilo para acompanhar o artista. Juntos cantam Soneto de um Amor Total, poesia de Vinicius que nunca tinha sido músicada, mas a dupla, faz algum tempo, interpreta nos shows. Eles ainda cantam a lindíssima (qual da dupla Toco e Vinicius que não é lindíssima?) Mais um Adeus. Camilla canta muito bem, tem presença de palco e pro Toquinho dar aquela descansada, ela assume o show cantando uma belíssima Romaria, de Renato Teixeira, e segue com clássicos como Saudosa Maloca, Canto de Ossanha e finda com um trecho de Eu Quero é Botar meu Bloco na Rua, do Sérgio Sampaio. Mesmo com o talento da Camilla, o momento deu uma esfriada no público, que queria ver o Toquinho. E ele volta e faz todo mundo cantar, ainda com Camilla dividindo os vocais, no clássico Onde Anda Você.






Toquinho, bom de prosa, novamente conversa com a plateia e conta como Vinicius, sempre ele, o estimulou a compor para crianças, a liberar seu lado lúdico e pueril, quando fizeram projetos antológicos como Arca de Noé. O cantor, então, com o telão ilustrado por desenhos, faz um medley de canções que estão no nosso imaginário infantil, como Casa, O Pato, O Ar e Bicicleta. Mas como controlar a emoção quando ele começa os primeiros acordes O Caderno, uma declaração de amor ao nosso companheiro desde o início de todas as fases escolares? Momento sublime do espetáculo e um dos grandes que presenciei no Araújo Vianna.
Em mais homenagens ao Vinícius, conta histórias do poetinha como seu medo de avião, o pó branco que ele levava para benzer os vôos e dava uma incomodação nas alfândegas pelo mundo para explicar tal mandinga e segue com mais uma seleção de músicas, entre elas, Como Dizia o Poeta, Para Viver um Grande Amor e Cotidiano 2. Fecha com a contagiante e esplêndida Regra Três, um dos maiores sambas da história. Em tom festivo se despede da plateia com Amigos Meus, mas lógico que estava faltando algo, né? Ele até esboça uma saída, mas o pianista começa aquela introdução clássica (não consegui pegar o nome dos excelentes músicos, uma lástima), Toquinho senta novamente e canta o clássico Aquarela, sem dúvida alguma, umas das canções mais conhecidas do Brasil. Com sua letra incrível, emociona uma plateia já de pé e que presenciou aquele solo magistral que encerra a música. Como comentei com amigos, ainda bem que vivi para presenciar esse momento, Aquarela com banda e com arranjo original. Quando tudo dava a entender que o show ia acabar (a banda saiu de novo), eles voltam e tocam, com um auditório todo sem sentar, mais um clássico, A Tonga da Mironga do Kabuletê, mandando praquele lugar qualquer pensamento negativo, afinal estávamos vendo o Toquinho.
Lamento quem não foi no show, já vi tanto show ruim de medalhões da MPB lotado, mas enfim, quem foi viu e não se arrependeu. Um artista com quase 80 anos esbanjando carisma, bom humor, leveza, com uma voz macia de veludo, que acalma a alma e um violão que faz a gente não desgrudar os olhos de suas mãos, tamanha destreza que tem com seu amigo. E como disse antes, sem exageros, virtuosismos vazios e show de técnica sem sentimento, Toquinho fala com a voz e seu violão é uma extensão disso tudo. Com 60 anos de carreira, como ele mesmo diz, não uma profissão, e sim um privilégio, quem foi premiado fomos nós, que temos o prazer de ter um artista tão completo e humano, que se confunde com a história do Brasil nas últimas décadas
Crédito das fotos: Vívian Carravetta