Alcione comemora 50 anos de carreira em Porto Alegre
É difícil, em algumas palavras, falar sobre a grandeza, talento e importância musical de Alcione Dias Nazareth. Ludovicense, com certa experiência na cena musical de São Luiz, veio para o Rio em 1972, gravou seu primeiro compacto no mesmo ano e não parou mais. Tornou-se uma das maiores cantoras do país, transcendeu o rótulo de sambista, cantou em diversas línguas, flertou pelo gênero romântico com suas letras sensuais, virando um símbolo idolatrado no país. Marrom anda correndo pelo país num show que comemora seus 50 anos de carreira e Porto Alegre foi uma das rotas naturais dessa celebração. Sexta passada, no Araújo Vianna, nós do NoSet, tivemos o prazer de conferir a voz privilegiada da Dama do Samba, aquela que com suas interpretações nos despertam Estranhas Loucuras e contamos aqui como foi essa noite.
O Araújo Vianna, literalmente, transbordava gente. Com as cadeiras lotadas, laterais de pé formando filas, com certeza tivemos um dos maiores públicos do ano. Mas a Marrom merece. Estranhamente começando por volta das 22 (eu tenho um ranço com isso, show tinha que ser em ponto e às 21… mas, quem sou eu?). Com uma super banda, com um som azeitado, surge no fundo do palco Alcione, com sua simpatia ímpar, vestido brilhante, ataca na sua primeira canção de Primo do Jazz, de 2024. Com seus trejeitos vocais, brincando com a voz, já encanta a plateia com sua interpretação magistral, levantando a massa. Logo depois, Alcione senta, infelizmente para não levantar mais. Com suas fortes dores nas costas e uma tosse constante, a diva senta numa confortável poltrona e emenda dali mesmo seus grandes sucessos. Naquele momento de canções sensuais de amores picantes e bandidos, canta Além da Cama e emenda Estranha Loucura, sucesso de 1987. Se as constantes tosses prejudicavam a artista, ela contava com o coral da casa, a plateia cantando a plenos pulmões, emocionando a artista. Ainda faz questão de dizer que desde sua primeira vez no Rio Grande do Sul foi acolhida e agradece essa calorosa troca de artista e fãs.
O show segue com uma mais recente, Faz Uma Loucura Por Mim, mas é com um medley de dois gigantes sucessos dos anos 1970 que levanta o auditório, com as maravilhosas Sufoco e O Surdo, relembrando os primórdios da carreira da Marrom. Volta a fase romântica, para muitos brega, mas com deliciosas letras, com Pior É Que Eu Gosto, de 1984, com a massa cantando junto. E na próxima, homenageia um baluarte do samba e da sua Mangueira, Juízo Final, cantada com a sua poderosa voz, o sucesso de Nelson Cavaquinho. Marrom continua com uma voz impecável, mas é nítida a dificuldade de manter uma canção inteira, faz pausas, manda o povo cantar e tem muitas tosses, toma café quente para ajudar, mas mesmo assim jamais desiste e segue o show.
Outro detalhe é que as canções são tocadas com passagens mais reduzidas para aliviar o drama de Alcione de manter um show longo. Enfim, chegou o carnaval e Alcione mandou Retalhos de Cetim, do mestre Benito di Paula, com um sofisticado arranjo da banda, mais uma vez dentro das limitações, o vozeirão incrível da cantora engrandecendo esse clássico. O Mundo É De Nós Dois, de 2003, e Mulher Ideal, dos anos 1990, começam um novo ciclo daquelas canções do estilo Alcione de ser, sempre cega de amor e disposta a tudo pela felicidade. Depois manda uma interpretação de Loba, que mostra que tem muito amor pra dar, mas que não vacile pra não ser surpreendida pela ferocidade de uma mulher forte e guerreira. Em um momento mágico, a cantora canta uma versão intimista de I Will Survive, de Gloria Gaynor, mostrando toda a sua bagagem de crooner dos anos 1960 e 1970, onde cantava em todas as línguas. Mas, voltando ao hino da era disco, depois ele coloca todo mundo pra dançar acelerando a música na batida setentista. Volta aos 1980 e canta a linda O Que Eu Faço Amanhã e Meu Vício É Você, mostrando que música boa é atemporal, com ambas na ponta da língua da plateia que lotava o auditório. Um momento sublime do show é quando ela chama a sobrinha, backing vocal, para cantar um sucesso dos anos 1980, de José Augusto e Paulo César Valle, imortalizada pela voz de Simone e regravada por sambistas atualmente. A jovem manda uma linda interpretação da emocionante Separação, canção que Alcione chegou a apresentar em parceira em um show com Chitãozinho e Xororó. Mostra que no sangue da família corre talento.
O baile segue com Entidade, de 1996, em uma marcante interpretação da cantora, mas é com Você Me Vira a Cabeça que a cabeça do Araújo literalmente pira. Um luxo de canção e vozeirão naquele exemplo de música com a marca registrada da Marrom. Mas como não podíamos nem respirar, tamanha a qualidade das canções, ela segue com a icônica Nem Morta, de Sullivan e Massadas, em mais um show da cantora, que mesmo com dores e tosse, não desanima e sempre dá a volta por cima e surpreende os fãs.
Segue o bloco de exaltação aos garotos, homens e paixões com Menino Sem Juízo, o clássico Garoto Maroto, uma das mais tocadas de 1986, o ano que o pagode estorou no Brasil e fecha o bloco com Meu Ébano, aquela do negão de tirar o chapéu, com direito a um telão com imagns de negros famosos do mundo inteiro, num momento emocionante, ainda mais na semana da consciência negra. Uma constatação assistindo o show de Alcione, é que como ela influenciou muito o pagode romântico dos anos 1990, com arranjos mais simples em sambas que falam de amor, dor de cotovelo e paixões impossíveis, inspirando muita gente como SPC, Negritude Júnior e Raça Negra, ao menos no quesito arranjo com teclados, letras de amor e de apelo mais popular.
O show segue com Gostoso Veneno, sucesso de samba do início dos anos 1980, fazendo a galera dançar no embalo contagiante da canção de Nei Lopes e Wilson Moreira. Chega o momento que Alcione lembra a sua Estação Primeira de Mangueira, que sabiamente vai homenagear a ilustre cantora no samba enredo A Negra Voz do Amanhã, no desfile de 2024. E como Alcione não é boba nem nada, apresenta o samba para Porto Alegre, que transforma o Araújo Vianna num ensaio de escola de samba. Embalada, manda um grande samba enredo campeão da Mangueira, entre mais de 20 títulos nas passarelas, transformando o lotado auditório num imenso carnaval, três meses antes do oficial.
Alcione ainda faz uma versão mais curta, mas não menos impecável e emocionante de seu maior sucesso como sambista, Não Deixe o Samba Morrer, com o auditório cantando de pé esse hino do samba, mas para surpresa de todos e em demonstração de carinho, ela canta com todo o esmero e sotaques de gaudério, um dos hinos não oficiais do Rio Grande do Sul, numa versão ao melhor estilo Alcione de O Canto Alegretense, com a plateia cantando alto junto com a diva. Alcione se levanta, agradece, é ovacionada de pé e sai de cena com sensação de dever cumprido, em mais uma noite para a história do Araújo Vianna.
O prazer de assistir e ouvir Alcione é algo incrível e a presença de mais de 4 mil pessoas é a prova do carinho do público com essa cantora que transgride, sambista, romântica, brega, sabe cantar o amor como poucos, nas suas canções apresenta o cotidiano, cheio de amores bandidos, difíceis, impossíveis, mas que nunca perdem o prumo e que geram uma fantasia no público, um clima sexy, maduro e real. E isso equilibrado com seus sambas, inesquecíveis, classudos e que a fazem entrar no panteão das maiores da história do estilo no país. Alcione, apesar das dificuldades que a fazem cantar sentada, com dores e algumas limitações, nunca desacorçoa, é uma guerreira, negra, mulher, que canta o amor, o Brasil e encanta os corações, alma e ouvidos dos brasileiros há mais de 50 anos e quiçá ainda teremos o prazer de ouvir essa voz e essa presença por muito tempo ainda. Um viva à Marrom!
Crédito das fotos: Vívian Carravetta